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China e EUA conseguirão passar de corrida espacial à cooperação?

A ascensão da China na exploração espacial - junto da sua nova parceria com a Rússia - está estimulando especialistas dos EUA a reconsiderar uma proibição de colaborações bilaterais.
cooperação entre EUA e China

Créditos: Christian Dorn/Pixabay

O que vai definir o futuro da ciência espacial internacional e da exploração do espaço durante o século 21? Será a cooperação ou a competição entre nações? A resposta destas perguntas pode ser resumida no modo como as duas maiores superpotências de voos espaciais, os Estados Unidos e a China, devem interagir uma com a outra nos próximos anos.

Os EUA continuam sendo o líder global segundo a maioria das métricas. Mas a China está avançando sua ambiciosa agenda espacial em um ritmo acelerado, planejando e realizando uma sucessão de incursões interplanetárias robóticas com destino ao cinturão de asteróides e Júpiter, bem como uma missão a Marte. Além disso, ainda há o plano chinês de cinco anos para a exploração lunar. Recentemente anunciada, a parceria com a Rússia prevê que os dois países desenvolvam juntos uma Estação Científica Lunar Internacional a ser administrada por equipes humanas.

Equanto isso, mais perto da Terra, a China também está construindo rapidamente seu “Palácio Celestial”, a estação espacial multimodular de Tiangong. Um segmento central da estação já está operando e abriga uma tripulação de três pessoas. No final do próximo ano, está programado um lançamento rápido de mais astronautas, espaçonaves de abastecimento e módulos adicionais para concluir a sua construção. A Agência Espacial Tripulada da China aprovou provisioriamente a realização de mais mil experimentos na estação, tendo convidado a participação estrangeira por meio da ONU

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O real impacto que o cronograma espacial da China, junto da colaboração russa, terá sobre os objetivos de exploração espacial dos EUA ainda está para ser visto. Mas alguns especialistas sugerem que pode estar na hora de os EUA buscarem pontos em comum na definição de uma agenda espacial multinacional mais inclusiva.

Por enquanto, porém, a legislação restritiva torna isso algo difícil de ser colocado em prática. Em 2011, o Congresso aprovou uma lei que incluía um complemento conhecido como Emenda Wolf. Batizada com o nome de seu idealizador, Frank Wolf, eleito pelo estado da Virgínia para a Câmara dos Representantes do EUA, a Emenda Wolf proíbe a Nasa de usar fundos federais para se envolver em cooperação bilateral direta com o governo chinês. Desde então, a possibilidade de revogação da emenda tem sido um jogo político entre facções ansiosas para pintar a China como um adversário e defensores menos combativos que desejam alavancar a ascensão do país nessa área para beneficiar os EUA.

MUDANDO ALIANÇAS

“Acho que veremos uma mistura de cooperação e competição entre dois blocos: um liderado pelos EUA e outro pela China. E isso não é necessariamente uma coisa ruim ”, disse John Logsdon, professor emérito da Universidade George Washington e fundador e ex-diretor do Space Policy Institute da universidade. “Afinal, foi uma disputa [dos EUA com a União Soviética] que nos levou à lua. Há agora uma competição entre os EUA e a China pela liderança global. ”

Quanto à China e à Rússia buscando instalar uma Estação Científica Lunar Internacional, Logsdon sugere que a reação dos EUA tem sido inconsistente. “Metade das vezes, reclamamos da falta de transparência [da China e da Rússia]. Mas então, quando eles explicitam seus planos, também não ficamos felizes ”. Após o colapso da União Soviética, “a Rússia recorreu aos EUA em 1993 [para ajudar a construir a Estação Espacial Internacional] a fim de salvar seu programa espacial. E agora acho que eles estão se unindo à China para fazer quase o mesmo. ”

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Estaria na hora de trabalhar mais de perto com a China, começando, possívelmente, com a revogação da Emenda Wolf? Logsdon pensa que sim, embora ressalte a discordância de muitos de seus colegas. “É uma questão legítima para o debate político.  Insistir na manutenção da Emenda Wolf todos os anos é uma maneira conveniente de evitar esse debate”. Por enquanto, acrescenta Logsdon, os EUA devem usar canais diplomáticos e científicos para testar as condições de futuros trabalhos com a China, para saber se qualquer parceria poderia ser mutuamente benéfica ou, pelo menos, possível. “A China pode – ou nós podemos juntos- dizer não”. Mas agora realmente não somos sequer capazes de tomar essa decisão.”

Fundamentalmente, no entanto, Logsdon rejeita a afirmação de que a China e os EUA estão destinados a se envolver em outra disputa espacial à rivalidade EUA- União Soviética durante a Guerra Fria. “Claro que há competição, mas não é uma corrida”, diz ele.

CASO POR CASO NO ESPAÇO

Porém, Bill Nelson, ex-senador da Flórida e agora o 14º administrador da Nasa, é o primeiro a discordar. As duas nações já estão em uma corrida espacial, diz ele, e os EUA devem ser cautelosos.

“Acho que temos uma China muito agressiva e bem-sucedida até o momento. Eles disseram que montariam uma estação espacial, e conseguiram. [Eles disseram que] trariam amostras lunares, e as trouxeram. Eles são a segunda nação a pousar em Marte e explorar o planeta com robôs. E ainda planejam colocar homens na lua. ”

“Eles divulgam seus planos e , depois, os seguem até o fim”, diz Nelson. “O programa espacial civil chinês é, na realidade, o programa espacial militar deles. Por isso, penso que vamos entrar em uma corrida espacial com a China.”

Mesmo antes de chegar à Nasa, Nelson já estava familiarizado com as ambições espaciais da China. Durante seis anos, ele presidiu o subcomitê espacial na Câmara dos Representantes dos EUA . Mais tarde, atuou como membro graduado do Comitê de Comércio, Ciência e Transporte do Senado. Ambas as posições tinham como essencial uma consciência situacional completa das atividades geopolíticas espaciais .

Em relação a perspectiva de trabalhar com a China, Nelson reflete sobre como as coisas evoluíram com a ex-União Soviética, que já foi “nosso inimigo mortal”. Em parte por causa do enorme arsenal nuclear de cada nação e da ameaça de destruição mutua, os EUA e a União Soviética finalmente chegaram a um impasse que se estendeu para o espaço, onde reinava a cooperação em vez da competição. Por mais de duas décadas,  a constamente tripulada EEI circula a Terra a cada 90 minutos. Sua construção em conjunto é o um grande exemplo do que a colaboração entre países pode alcançar. “As coisas não vão bem em terra firme … mas no espaço sim”, disse.

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Essa é a relação que Nelson deseja que os EUA tenham com a China. Mas, infelizmente, segundo ele, por enquanto, a tendência desta última para o sigilo impede qualquer parceria semelhante. É necessária mais abertura. “Liderança no espaço é liderança de forma transparente para que todas as nações se juntem a você”, diz Nelson. Se, no entanto, a escolha de dar prosseguimento a qualquer trabalho com a China em seu programa espacial, “exige uma certificação minha de que isso não afeta nossa segurança nacional. Então, vamos considerar caso por caso. ”

Um caso poderia ser trabalhar com a China para facilitar o compartilhamento de alguns dos espécimes coletados em sua recente e altamente bem-sucedida missão de retorno de amostra lunar Chang’e-5.  De acordo com a Emenda Wolf, contanto que os pesquisadores dos EUA não utilizem quaisquer fundos da Nasa e mantenham os projetos universitários financiados pela Nasa separados dos relacionados a China, nada impede que pesquisadores americanos solicitem e recebam as amostras ​​lunares.

Da mesma forma, a iniciativa marciana da China é outra perspectiva futura. “As amostras de Marte deles voltariam ao mesmo tempo que as nossas, então essa seria uma grande oportunidade”, sugere Nelson.

HARMONIA NO CÉU?

Existem, é claro, maneiras de a recém-anunciada parceria espacial entre a China e a Rússia fortalecer os EUA, mesmo sem cooperação significativa. Poderia, por exemplo, obrigar a Casa Branca e o Congresso a investirem nos programas espaciais civis e militares dos EUA, diz Marcia Smith, analista veterana que dirige o site SpacePolicyOnline.com. Mas se isso renderia financiamento suficiente para atender às metas do programa Artemis da Nasa – ou seja, pousar astronautas na Lua já em 2024 – é outra questão. A base de pesquisa lunar China-Rússia, confrome aponta Smith, não prevê pousos lunares humanos até 2036 , “portanto, não é exatamente uma corrida”.

Alternativamente, como a Emenda Wolf permite que a Nasa trabalhe com a China sob certas circunstâncias muito restritivas, talvez uma colaboração mais sólida ainda esteja em jogo.

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“Se a Nasa conseguir convencer o Congresso de que uma proposta de cooperação não necessariamente significa que haverá transferência de tecnologia ou que funcionários dos EUA terão envolvimento direto na violação dos direitos humanos, ela pode ser aprovada”, disse Smith. “Isso só restringe a cooperação bilateral, não multilateral.” Mesmo assim, ela acrescenta, no momento, a colaboração espacial NASA-China é mínima e não há nenhuma indicação de que isso vá mudar em breve.

Enquanto isso, os EUA ainda compartilham a responsabilidade com a Rússia em manter e desenvolver o programa de exploração espacial humana multinacional que levou à criação da EEI.  A NASA, explica Smith, espera que a Rússia não apenas continue a ser parceira da Estação Espacial Internacional, mas também ajude a construir uma estação espacial lunar para o programa Artemis da agência.

“Talvez a Rússia opte por trabalhar com a China, bem como com o esforço multinacional liderado pelos EUA. Mas fazer os três trabalharem em harmonia para explorar os céus? Isso não acontecerá sem mudanças geopolíticas siginificativas que estão longe de serem vistas em minha bola de cristal ”, conclui.

DINÂMICAS DE PODER NO ESPAÇO

Quanta cooperação espacial dois sistemas autoritários podem realmente alcançar não está claro, diz Dean Cheng, pesquisador em assuntos políticos e de segurança no Centro de Estudos Asiáticos da Heritage Foundation em Washington, D.C. “É fácil anunciar. A real cooperação é difícil”;

“A Rússia parece ser o parceiro mais fraco em qualquer relação espacial Rússia-China”, acrescenta Cheng. “E a Rússia não gosta de ser o parceiro mais fraco, seja com o Ocidente após o colapso da ex-União Soviética ou com a China.”

Conforme observa o pesquisador, os EUA se saem bem ao cooperar com outros estados que demonstram transparência e respeitos pela propriedade intelectual, pela legislação em relação aos direitos humanos e soberania naciona. Todas essas áreas são pontos de tensão com a China. A história de conflitos e sua provável continuação no futuro fazem com que Cheng seja cético em relação a qualquer esperança de cooperação espacial entre as duas nações a curto prazo.

Jim Head, cientista planetário da Brown University e especialista em exploração espacial, trabalha multilateralmente com cientistas espaciais russos, chineses e europeus, na análise de locais de pouso para futuras missões interplanetárias. Seja em conflito ou colaboração, diz ele, a única constante nas aspirações espaciais da China é que elas não vão parar.

“A China está na ‘rota da seda’ para o espaço”, brinca Head. “Eles estão fazendo isso; não há dúvidas. Seu programa espacial é importante para os país, estabelecendo orgulho e prestígio nacional. Não é bom apenas para a ciência, mas para tudo [que a nação faz]. Se nos sentarmos e enterrarmos nossas cabeças na areia e não fizermos nada nós mesmos, eles continuarão e não estarão esperando por nós“.

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Segundo Head, a China já está se aproximando de uma posição de liderança na ciência lunar. O país demonstrou que consegue enviar espaçonaves de retorno de amostra para os lados próximos e distantes da lua.

Em vez de esperar um grande levantamento da Casa Branca para mudar a Emenda Wolf, Head sugere que pode ser mais frutífero solicitar ao Congresso uma exceção para que cientistas possam trabalhar bilateralmente com seus colegas chineses em projetos espaciais. Um caminho a  ser seguido pode ser através Grupo Consultivo Interinstitucional para Ciência Espacial, um coletivo informal de pesquisadores das principais agências espaciais que executam a coordenação interinstitucional em missões selecionadas.

Ter a China como signatária dos Acordos Artemis também pode ser um caminho produtivo, acrescenta Head. Liderados pelo Departamento de Estado dos EUA e pela Nasa, esses acordos descrevem uma visão compartilhada de princípios. Eles tem como base o Tratado do Espaço Exterior de 1967 e visam criar um ambiente seguro e transparente que facilite a exploração, estudos e execução de atividades comerciais na lua.  Até o momento da publicação deste texto, uma dúzia de países já haviam adotado os Acordos Artemis: Austrália, Brasil, Canadá, Itália, Japão, Luxemburgo, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Ucrânia, Emirados Árabes Unidos, Reino Unido e EUA.

“O sistema solar é imenso. É simplesmente estúpido fazer tudo individualmente. Então o caminhos a ser percorrido é o da colaboração, cooperação e coordenação”, conclui Head.

Leonard David 

Publicado em 03/08/2021

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