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Tesouros soterrados em Madagascar

A quarta ilha em tamanho do mundo apresenta fósseis que podem revolucionar as teorias científicas sobre a origem dos dinossauros e dos mamíferos

Três semanas depois do início de nossa expedição em busca de fósseis em Madagascar, em 1996, temíamos que o único resultado de nossos esforços fosse a enorme quantidade de poeira acumulada em nossas roupas. Tudo o que tínhamos recolhido eram uns poucos ossos e dentes coletados ao acaso. O terreno difícil e outros problemas de logística dificultavam a busca.

Com a época do ano favorável aos trabalhos de campo chegando rapidamente ao fim, finalmente encontramos um sinal animador no sudoeste da ilha. Um mapa para turistas pendurado no centro de visitantes do Parque Nacional Isalo registrava um lugar na área chamado de “o local dos ossos de animais”. Imediatamente, pedimos que nos levassem a esse lugar.

Nossas esperanças ruíram rapidamente, quando percebemos que os pedaços de esqueleto descobertos pela erosão, na encosta de uma colina, pertenciam a
vacas e outros animais modernos. O local poderia ter interesse para os arqueólogos, mas não mostrava sinais de abrigar o material antigo que procurávamos. Mais tarde no mesmo dia, porém, outro guia, acompanhado de umas duas dúzias de crianças curiosas da aldeia, nos levou a uma segunda encosta, também cheia de ossos. Com entusiasmo, descobrimos dois fragmentos de mandíbula, do tamanho de um polegar, que eram indubitavelmente bem antigos. Pertenciam a primos dos dinossauros, extintos há muito tempo. Eles tinham bicos parecidos com os dos papagaios e são conhecidos como rincossauros.

Aqueles ossos de rincossauro foram os precursores de uma impressionante série de descobertas pré-históricas. A partir desse encontro, Madagascar, a quarta ilha em tamanho da Terra, transformou-se numa prolífica fonte de novas informações sobre animais da era Mesozóica, o intervalo da história do planeta, entre 250 milhões e 65 milhões de anos atrás, quando os dinossauros e os mamíferos entravam em cena.,Desenterramos ossos de dinossauros primitivos que, suspeitamos, são os mais antigos que existem. Também abrimos uma nova discussão ao descobrir uma criatura, semelhante a um camundongo, que parece desafiar uma teoria predominante na história dos mamíferos, por estar no hemisfério “errado”. Esses espécimes estranhos, ao lado de muitos outros que coletamos em cinco temporadas de trabalho de campo, já nos permitem começar a traçar um quadro da história antiga de Madagascar e nos ajudaram a planejar nossa sexta expedição, que estamos realizando este ano.

Grande parte das pesquisas que realizamos há cerca de 20 anos teve como objetivo traçar a história dos animais terrestres dos continentes meridionais. O mesmo objetivo levou outros paleontólogos a áreas de fósseis no Brasil, África do Sul, Antártica e Índia. Em vez de continuar a exploração dessas áreas já bem estabelecidas, em busca de mais algumas descobertas, fomos atraídos por Madagascar. A ilha tem largos trechos de rochas da era Mesozóica, mas, até recentemente, só um punhado de fósseis de vertebrados terrestres tinha sido descoberto em seu território. Por quê? Tínhamos o palpite de que ninguém havia procurado com a persistência necessária.

A boa sorte nos acompanha

A persistência transformou-se em nosso lema, na expedição de 1996. Nossa equipe era composta por 12 pesquisadores e estudantes dos Estados Unidos e da Universidade de Antananarivo, em Madagascar. Entre outras vantagens, nossa associação com a universidade mais importante do país facilitou a obtenção das licenças de coleta e exportação, exigências indispensáveis para qualquer trabalho de campo em paleontologia. Mas, cedo, começamos a enfrentar obstáculos de ordem logística que, sem dúvida, devem ter contribuído para o malogro de projetos anteriores de busca de fósseis antigos na ilha.

Os depósitos mesozóicos no oeste de Madagascar estão espalhados por uma área um pouco superior à do Rio Grande do Sul e Santa Catarina somados. Para chegar às áreas mais remotas, só existem trilhas mantidas pela passagem de gerações de viajantes a pé e em carros de boi. Nem mesmo veículos com tração nas quatro rodas conseguem passar por elas. Tínhamos que transportar a maior parte de nossa comida, incluindo centenas de quilos de arroz, feijão e conservas, a partir da capital. A falta de combustível chegou a restringir seriamente nossa mobilidade diversas vezes. Nosso trabalho também foi prejudicado pelos incêndios que ocorrem com freqüência e se espalham sem serem combatidos. Novos problemas surgiam, muitas vezes sem aviso, obrigando-nos a mudar nossos planos na hora.,O maior desafio que enfrentamos quando resolvemos explorar uma área tão grande foi a de escolher por onde começar. Felizmente, não estávamos completamente às escuras sobre o assunto. O trabalho de campo pioneiro de geólogos como Henri Besairie, que dirigiu o ministério das minas de Madagascar no século passado, produziu mapas em grande escala das rochas do mesozóico da ilha. Por esses estudos, sabemos que uma combinação fortuita de fatores geológicos levou ao acúmulo de um denso lençol de sedimentos sobre a maior parte das planícies do oeste de Madagascar, o que nos dava boas razões para acreditar que restos de animais antigos podiam estar preservados na área.

No início da era mesozóica, 250 milhões de anos atrás, seria possível ir a pé de Madagascar a quase todas as outras partes do mundo. Todas as massas de terra do planeta estavam unidas no supercontinente Pangea e Madagascar se situava entre a costa ocidental do que é hoje a Índia e a parte leste da África atual (veja o mapa desta página). A Terra era bem mais quente que hoje e nem nos pólos havia gelo. Na parte sul do supercontinente, chamada Gonduana, enormes rios formavam imensas bacias nas planícies que seriam um dia cobertas pelo canal de Moçambique, o trecho de mar com 400 quilômetros de largura que separa Madagascar do continente africano.

Estas gigantescas bacias representam a margem do corte geológico criado quando Madagascar começou a separar-se da África, mais de 240 milhões de anos atrás. Esse processo aparentemente destrutivo, conhecido como rifting, é uma maneira extremamente eficaz de produzir acúmulos de fósseis. (Aliás, muitos dos locais mais importantes do mundo para o estudo de fósseis de vertebrados se encontram em rifts antigos, incluindo o famoso registro da evolução inicial da humanidade descoberto em bacias de rifts muito mais recentes da África Oriental). Os rios que corriam por essas bacias traziam lama, areia, e, de vez em quando, cadáveres ou ossadas de animais. Com o passar do tempo, os rios foram depositando esse material em grandes camadas. A continuação do processo de separação entre as terras e a massa cada vez maior de sedimentos faziam com que as bases das bacias fossem afundando mais e mais. Esse processo de deposição continuou por cerca de 100 milhões de anos, até que as bases das bacias se tornaram tão finas que se partiram. Rochas derretidas subiram então do interior do planeta e preencheram o espaço vazio, transformando-se numa nova crosta oceânica.

Até essa altura, a natureza tinha dado a Madagascar três ingredientes muito importantes para a preservação de fósseis: organismos mortos, locais baixos onde podiam ser soterrados (as bacias) e material para cobri-los (lama e areia). Mas também havia a necessidade de condições especiais para garantir que esses fósseis não fossem destruídos nos 160 milhões de anos seguintes.,Mais uma vez, circunstâncias geológicas prestaram sua colaboração. Conforme as massas terrestres da África e de Madagascar, recentemente separadas, se afastavam cada vez mais, seus litorais, cobertos de sedimentos, raramente experimentaram erupções vulcânicas ou outros fenômenos que poderiam facilmente ter destruído os fósseis sepultados. Também ajudou muito a preservação dos fósseis o fato de as antigas bacias dos rifts terem ficado na parte ocidental da ilha, coberta hoje de florestas secas, capinzais e vegetação desértica. Num ambiente mais úmido, esses depósitos teriam sido destruídos pela erosão ou ficariam escondidos sob uma vegetação densa, como a que domina boa parte do lado oriental.

No começo, Madagascar continuou ligada às outras massas terrestres de Gonduana, Índia, Austrália, Antártica e América do Sul. Só se transformou numa ilha quando se desligou da Índia, cerca de 90 milhões de anos atrás. No espaço de tempo que se seguiu, a ilha adquiriu sua coleção de seres modernos estranhos, dos quais os lêmures são os mais conhecidos. Durante mais de um século, os cientistas se perguntaram há quanto tempo esses seres modernos e seus antepassados habitavam a ilha. Importantes descobertas feitas por outra equipe de paleontólogos indicam agora que quase todos os grupos importantes de vertebrados vivos chegaram a Madagascar num período próximo ao fim da era mesozóica, 65 milhões de anos atrás (veja “Mistério dos Dias de Hoje”, na página 70). Nossos trabalhos tinham como foco um espaço de tempo ainda mais antigo da história da ilha, os dois primeiros períodos do mesozóico.

Poeira vermelha

Uma das vantagens de se trabalhar num terreno pouco conhecido é a de estar certo da importância científica de qualquer achado. Por isso, ficamos muito estimulados por nossas primeiras descobertas perto do Parque Nacional Isalo. Naquela mesma tarde de 1996 em que encontramos os fragmentos de mandíbula de rincossauro, um estudante da Universidade de Antananarivo, Léon Razafimanantsoa, avistou o crânio de 15 centímetros de comprimento de outro animal interessante. Identificamos imediatamente o animal como um herbívoro peculiar, nem mamífero nem réptil, chamado cinodonte traversodontídeo.

Os pedaços de mandíbula de rincossauro e o crânio de traversodontídeo, as primeiras descobertas importantes do nosso projeto americano-malgaxe, deram novo vigor à expedição. O primeiro fóssil é sempre o mais difícil de ser encontrado. Agora, podíamos fazer uma pausa e iniciar o trabalho detalhado de coleta necessária à obtenção das peças que formariam uma imagem do passado. Os arenitos brancos que estávamos explorando foram formados pela areia transportada por rios que desciam sem obstáculos da África para as planícies de Madagascar. Nesses vales, rincossauros e traversodontídeos, criaturas de quatro patas, entre 1 e 3 metros de comprimento, provavelmente pastavam juntos, da mesma forma que zebras e gnus fazem na África moderna.,A presença de rincossauros, relativamente comuns em rochas desse período no mundo, estreitou a data do nosso quadro para o período Triássico (o primeiro dos três intervalos de tempo da era Mesozóica), entre 250 milhões e 205 milhões de anos atrás. E, como os traversodontídeos eram muito mais comuns e diversificados na primeira metade do Triássico do que na segunda, pensamos inicialmente que nosso cenário tinha ocorrido um pouco antes de 230 milhões de anos atrás.

Durante a segunda expedição, em 1997, um terceiro tipo de animal surgiu como um desafio ao nosso sentido de tempo. Pouco depois de chegarmos ao sudoeste de Madagascar, um ajudante da expedição, morador da área, chamado Mena, nos mostrou ossos encontrados próximo ao local de nossas primeiras explorações, do outro lado de um rio. Ficamos espantados pela rocha vermelha, muito fina, que aderia aos ossos, pois tudo o encontrado até aquele momento estava enterrado no arenito grosso e branco.

Mena nos conduziu ao fundo de uma ravina estreita, cerca de 800 metros ao norte do local onde tínhamos encontrado os restos de rincossauro e traversodontídeo. Em poucos minutos, localizamos a camada de onde os ossos recolhidos por ele tinham rolado. Uma rica concentração de fósseis estava soterrada na camada de 1 metro de largura de argila vermelha, formada pelos mesmos rios que depositaram a areia branca. As escavações levaram a cerca de duas dúzias de espécimes que pareciam ser de dinossauros. Nossa equipe encontrou mandíbulas, costelas, quadris, um braço articulado com ossos do pulso e outros pedaços variados de esqueletos. Quando examinamos melhor esses e outros ossos, percebemos que tínhamos descoberto os restos de duas espécies de prossaurópodes (ainda sem nome oficial), uma das quais parecia ser semelhante a uma espécie do Marrocos chamada Azendohsaurus. Esses prossaurópodes, que normalmente aparecem em rochas com entre 225 milhões e 190 milhões de anos, são precursores, menores, dos dinossauros saurópodes de pescoço comprido, entre os quais estão gigantes como o Brachiosaurus.

Quando descobrimos que dinossauros pastavam entre rincossauros e traversodontídeos, ficou clara a presença de uma coleção de fósseis mostrando uma coexistência inexistente em nenhuma outra parte do mundo. Na África, na América do Sul e em outros lugares, os traversodontídeos são menos comuns e diversificados logo que os dinossauros aparecem. Além disso, o tipo mais comum de rincossauro que estávamos encontrando, o Isalorhynchus, não tem características avançadas e por isso é considerado mais antigo que o grupo de rincossauros encontrados com outros dinossauros primitivos. Mais que isso: o conjunto de fósseis de Madagascar não incluía restos de vários grupos de répteis mais recentes, normalmente encontrados com os dinossauros primitivos, como os fitossauros e os aetossauros, monstros blindados, semelhantes a crocodilos. A ocorrência de dinossauros junto a tipos mais antigos de animais e a inexistência de grupos mais recentes indicam que os prossaurópodes de Madagascar são pelo menos tão velhos como qualquer dinossauro descoberto até hoje, se não forem mais velhos.,Só um local de fósseis de dinossauros primitivos, Ischigualasto, na Argentina, contém uma camada de rochas que foi datada diretamente. Calcula-se que todos os outros locais de fósseis de dinossauros primitivos com restos semelhantes tenham no máximo sua idade radioisotópica, de cerca de 228 milhões de anos. (Idades radioisotópicas confiáveis de fósseis são obtidas a partir de camadas de rochas produzidas por vulcões contemporâneos e os sedimentos de Madagascar se acumularam numa rift basin, sem vulcões nas proximidades).

Com base nos fósseis encontrados concluímos que nossas rochas com restos de dinossauros eram um pouco mais antigas que as do período de Ischigualasto. Como os prossaurópodes representam um dos principais ramos da evolução dos dinossauros, sabemos que o ancestral de todos os dinossauros deve ser ainda mais antigo. Rochas com mais de 245 milhões de anos foram submetidas a amostragens através do mundo, mas nenhuma delas mostrou até hoje fósseis de dinossauros. Isso significa que a busca ao ancestral comum de todos os dinossauros deve ter como foco um período mal conhecido da metade do Triássico, com entre 240 milhões e 230 milhões de anos.

Os dinossauros costumam atrair muita atenção. São os animais terrestres do Mesozóico pelos quais há maior interesse. Poucos lembram o fato de que dinossauros e mamíferos entraram no processo de evolução mais ou menos no mesmo período. Pelo menos dois fatores são responsáveis pela idéia errada, mas muito popular, de que os mamíferos só surgiram depois que os dinossauros se tornaram extintos.

Os primeiros mamíferos eram pequenos com, no máximo, o tamanho de um ratão-do-banhado ou castor, e, por isso, não estimulam tanto a imaginação como seus gigantescos contemporâneos do Mesozóico. Além disso, os registros fósseis dos mamíferos primitivos são muito esparsos, a não ser por um período bem no fim dessa era. Para nossa satisfação, Madagascar preencheu dois claros bastante misteriosos no registro de fósseis. Os cinodontes traversodontídeos de Isalo estão revelando novos detalhes sobre um grupo de animais bastante próximo dos mamíferos e um fóssil mais recente, encontrado no noroeste da ilha, está colocando questões interessantes sobre quando e onde um grupo muito importante e mais evoluído de mamíferos teve seu início.,Os traversodontídeos de Madagascar incluem alguns dos representantes melhor preservados dos cinodontes primitivos. Assim, esses ossos forneceram uma grande quantidade de informações anatômicas ainda não documentadas sobre esses animais. Esses cinodontes têm como característica uma mandíbula inferior muito simples, dominada por apenas um osso, o dentário. Temos crânios e esqueletos de algumas espécies. Compreender a morfologia completa desses animais é um ponto básico para resolver a complicada transição da evolução de animais grandes, de sangue frio, cobertos de escamas, com membros abertos (os senhores dos continentes antes do Mesozóico) para seres menores, de sangue quente, com pêlos e postura mais ereta.

Muitos tipos de mamíferos, com diversas variações anatômicas, são encontrados hoje no planeta. Todos têm um ancestral comum, com uma série bem distinta de características. Para determinar a aparência dos primeiros mamíferos, os paleontólogos examinam seus parentes mais próximos na linha da evolução entre os cinodontes. Eles incluem os traversodontídeos e outros animais, muito mais raros, conhecidos como chiniquodontídeos ou probainognatianos. Os dois tipos foram encontrados no sudoeste de Madagascar. Os traversodontídeos, com quase toda a certeza, eram herbívoros, pois tinham dentes largos, próprios para mastigar a vegetação.

Dentes afiados e pontudos. Uma das quatro novas espécies de traversodontídeos encontradas em Madagascar tem também incisivos grandes, espessos, projetados para a frente, próprios para prender as plantas. Os chiniquodontídeos, porém, eram carnívoros, com dentes afiados e pontudos. Na opinião da maioria dos paleontólogos, os chiniquodontídeos têm um ancestral comum mais recente com os mamíferos que os traversodontídeos. Os crânios e esqueletos de chiniquodontídeos que encontramos em Madagascar ajudarão a reconstituir a ponte entre os cinodontes primitivos e os mamíferos verdadeiros.

Os cinodontes do Triássico de Madagascar não estão apenas entre os melhor preservados do mundo. Representam também uma amostra de um período de tempo mal conhecido em outros lugares.,A persistência deu frutos. Durante nossa temporada no campo de 1996, visitamos a aldeia de Ambondromahabo, depois de ouvir informações de que havia muitos fósseis grandes do dinossauro saurópode Lapperentosaurus na área. Às vezes, onde animais grandes são preservados, também podem ser encontrados restos de animais menores, embora sua descoberta apresente maiores dificuldades. Debruçamo-nos sobre a paisagem, olhos a apenas alguns centímetros do chão. Esta estratégia desconfortável, mas aprovada pela experiência, nos rendeu alguns dentes pequenos de dinossauros terópodes, escamas de peixe e outros fragmentos de ossos, alguns dos quais acumulados na superfície de um pequeno monte de sedimentos próximo à aldeia.

Esses fósseis eram uma indicação de que material mais importante poderia estar enterrado no interior do monte de sedimentos. Ensacamos cerca de 100 quilos de sedimentos e lavamos o material através de mosquiteiros de chapéu quando voltamos à capital, Antananarivo, e enquanto esperávamos as licenças para a segunda etapa de nossa viagem, na qual iríamos para o sudoeste e encontraríamos os restos de rincossauros e o crânio de traversodontídeo.

Nos Estados Unidos, o tedioso trabalho de separar o material dos sedimentos do Jurássico se arrastou por vários anos, enquanto concentrávamos nossa atenção no excepcional material do Triássico. Um dedicado grupo de voluntários do Field Museum de Chicago – Dennis Kinzig, Ross Chisholm e Warren Valsa – passou muitos fins de semana observando o sedimento concentrado no microscópio, em busca de valiosas lascas de ossos ou dentes. Não demos muita atenção aos sedimentos até 1998, quando Kinzig nos passou a informação da descoberta de um pedaço de mandíbula de um pequeno mamífero, com três dentes mastigadores ainda no lugar. Ficamos espantados, não só pela descoberta da mandíbula, mas pelo fato de os dentes serem bastante avançados. As formas dos dentes documentam a ocorrência mais antiga de um tribosfenídeo, grupo que compreende a maior parte dos mamíferos vivos. Batizamos a nova espécie de Ambondro mahabo, como homenagem ao seu local de origem.

Recuo ao passado

A descoberta empurrou o alcance geológico desse grupo de mamíferos mais de 25 milhões de anos para o passado e ofereceu o primeiro registro da evolução dos mamíferos no Hemisfério Sul durante a primeira metade do período Jurássico. Ela mostra que esse subgrupo dos mamíferos pode ter evoluído no Hemisfério Sul e não no Hemisfério Norte, como se pensava. Embora as informações disponíveis não resolvam conclusivamente o debate, essa importante adição ao registro de fósseis de mamíferos primitivos demonstra a natureza precária de conclusões tomadas há muito tempo a partir de dados que historicamente estão desviados a favor do Hemisfério Norte.,Apesar de nossa equipe ter recuperado um espectro muito amplo de fósseis em Madagascar, os cientistas estão apenas começando a traçar a história dos continentes meridionais no Mesozóico. O número de espécies de vertebrados terrestres do Mesozóico conhecidos da Austrália, Antártica, África e América do Sul é provavelmente menor em uma ordem de magnitude com relação às descobertas da mesma época feitas no Hemisfério Norte.

Durante nossas três primeiras expedições, não demos muita importância ao cascalho que cobria os afloramentos de rochas do Triássico na parte sudoeste da ilha. Não percebemos que havia safiras nesse cascalho. Em 1999, dezenas de milhares de pessoas estavam revolvendo o solo da área em busca dessas pedras preciosas. No ano seguinte, todos os nossos locais de exploração do Triássico estavam dentro de áreas demarcadas para a mineração de safiras. Essas áreas são agora de acesso proibido para todos, inclusive para paleontólogos, a menos que obtenham licenças tanto do proprietário como do governo. É um obstáculo a mais para nossas explorações.,Por Kate Wong

Os três Land Rovers fizeram uma pausa enquanto John Flynn consulta o aparelho. “O GPS está contente?”, alguém pergunta. Flynn decide que sim. A caravana continua devagar, atravessando o mato, seguindo trilhas normalmente usadas por carros de boi. Estamos viajando desde as 7 da manhã, quando deixamos a capital de Madagascar, Antananarivo. Agora, com o céu azul do fim da tarde assumindo tons de salmão e malva, estávamos ansiosos para descobrir um local onde montar nosso acampamento. Um pequeno amontoado de cabanas cobertas de palha aparece nas proximidades. Flynn manda um grupo diplomático, a pé, para perguntar aos moradores se podemos acampar na área. Quando chegamos à clareira que escolhemos, a última luz do dia já desapareceu e montamos nossas barracas no escuro. O trabalho de verdade começará amanhã.

A equipe da expedição, composta por sete malgaxes e seis americanos, dirigida pelos paleontólogos Flynn e André Wyss, respectivamente do Field Museum de Chicago e da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, está nesta parte remota do noroeste de Madagascar em busca de fósseis pertencentes a mamíferos primitivos. Pesquisas anteriores na região revelaram sedimentos, vermelhos e pardos, que datam do período Jurássico, o antigo espaço de tempo (mais ou menos entre 205 milhões e 144 milhões de anos atrás) no qual os mamíferos fizeram seu aparecimento. Entre os fósseis já descobertos está um pequeno fragmento de mandíbula com implicações muito grandes.

A sabedoria convencional diz que os precursores dos modernos mamíferos, com placenta ou marsupiais, surgiram no fim do período Jurássico no Hemisfério Norte. Essa teoria se baseia nas idades e localizações dos restos mais antigos dessas criaturas, semelhantes a camundongos, caracterizadas pelos chamados molares tribosfênicos. Mas a mandíbula de Madagascar, que Flynn e Wyss atribuíram a um novo gênero e espécie, Ambondro mahabo, tem dentes tribosfênicos e data do meio do Jurássico, cerca de 167 milhões de anos atrás. Se isso for verdade, é uma indicação de que os mamíferos tribosfênicos surgiram pelo menos 25 milhões de anos antes do que se pensava e possivelmente sua origem está no Sul, não no Norte.

Ninguém discutiu até agora a idade do A. mahabo. Mas nem todos concordam com a idéia de que a descoberta coloca a origem dos mamíferos tribosfênicos no Hemisfério Sul. O especialista em mamíferos fósseis Zhexi Luo, do Museu Carnegie de História Natural de Pittsburgh, e vários de seus colegas sugeriram recentemente que o A. mahabo e o fóssil de um animal surpreendentemente semelhante descoberto na Austrália, chamado Ausktribosphenos nyktos, podem, na realidade, representar uma segunda linha de mamíferos tribosfênicos, a que deu origem aos monotremados, que põem ovos. Flynn e Weiss respondem que algumas das características usadas por esses pesquisadores para ligar os tribofênicos meridionais aos monotremados podem ser semelhanças primitivas e, portanto, não indicam um parentesco evolutivo especialmente próximo.,Como acontece com muitos outros debates na paleontologia, grande parte da controvérsia sobre quando e onde esses grupos de mamíferos apareceram pela primeira vez vem do fato de que foram encontrados muito poucos ossos antigos. Se tivermos sorte, o trabalho de campo deste ano nos ajudará a preencher alguns dos vazios no registro de fósseis. A coleta de mais espécimes de A. mahabo ou restos de mamíferos ainda não conhecidos poderá fortalecer consideravelmente a posição de Flynn e de Wyss, a favor de que os ancestrais dos modernos mamíferos tiveram origem no Hemisfério Sul.

Na manhã seguinte, depois de um desjejum rápido com pão, manteiga de amendoim e café, voltamos aos veículos, seguindo o caminho indicado pelo GPS através da vegetação até o local da descoberta de fósseis feita pela expedição do fim do ano anterior.

Flynn instrui o grupo a começar o trabalho na base da encosta. Ele e Wyss vão explorar a área em volta, buscando afloramentos que possam conter fósseis. “Se aparecer alguma coisa interessante, vá me buscar”, ele pede. Com ferramentas nas mãos e olhos a poucos centímetros do chão, os trabalhadores começam a percorrer o terreno coberto de pedrinhas, procurando ossinhos, sinais de que delicados fósseis de mamíferos estão preservados abaixo do solo. Eles engatinham e freqüentemente escorregam durante a busca, parando apenas de vez em quando para tomar alguns goles d\’água de garrafas aquecidas pelo Sol. Como os restos de mamíferos primitivos são muito pequenos (o fragmento de mandíbula do A. mahabo, por exemplo, tem apenas 3,6 milímetros de comprimento), o sacrifício raramente leva a recompensas imediatas. Quase sempre a equipe se limita a coletar sedimentos que podem conter fósseis e enviar esse material para os Estados Unidos, onde será examinado com todo o cuidado. Depois de algumas horas, são recolhidos uma costela muito pequena e um fragmento de fêmur, as primeiras indicações de que o terreno pode render coisas importantes.

No terceiro dia, a equipe marcou alguns locais mais promissores e separou cerca de uma tonelada de sedimentos, que serão lavados. O grupo segue para uma espécie de açude, onde um riacho foi represado, usado pelos habitantes para dar água aos seus animais. Apesar do calor escaldante, os membros da equipe que vão trabalhar na água usam botas e luvas de borracha, para proteger-se dos parasitas que provavelmente habitam a água turva e esverdeada. Passam as horas seguintes passando os sedimentos por baldes e cestas com fundo de tela. Wyss espalha o concentrado, o material que sobrou da lavagem, numa grande folha de plástico azul, para secar. Quando o material chegar ao Field Museum, voluntários examinarão esse concentrado ao microscópio, uma colherada de cada vez. Wyss, de qualquer maneira, está otimista. “Já se pode ver ossos na mistura”, observa. O material onde estava o ossinho do A. mahabo não mostrava nenhuma indicação desse tipo a olho nu.,Cansados da lavagem e com muito calor, os pesquisadores fazem com satisfação uma pausa para o almoço. Na sombra de uma árvore mokonazy, comem sanduíches de sardinha, queijo gouda e jalapeño, brincando sobre o pão que, quatro dias depois da partida de Antananarivo, já está bem duro. Wyss, com toda a cerimônia, deposita uma ração de balinhas jujuba em cada par de mãos estendidas, palmas para cima. Alguns guardam as balinhas para comer depois, outros fazem trocas por sabores diferentes, uns, com pesar, passam adiante os doces, pagando dívidas de apostas feitas durante o trabalho.
Normalmente há um curto período de repouso depois do almoço, mas hoje a Natureza tem uma surpresa. Um incêndio na mata, que foi observado horas antes num local distante, move-se agora rapidamente em nossa direção, vindo do nordeste, com a ajuda de um vento forte.

Uma hora mais tarde, o fogo diminuiu e a equipe volta ao regato, com o objetivo de terminar rapidamente o trabalho de lavagem. As margens, antes cobertas de capim seco, agora estão nuas e enegrecidas. Preocupados com a possibilidade de o vento soprar mais forte e trazer as chamas de volta, guardamos o material e vamos para outro local de exploração, onde trabalhamos pelo resto da tarde.
Terminou mais um dia de esforços para desvendar o passado.

Kate Wong é redatora e editora da ScientificAmerican.com,Madagascar é famosa por ter 40 espécies de lêmures. Nenhuma delas ocorre em outras partes do mundo. O mesmo acontece com 80 % das plantas e de todos os animais da ilha. Esta peculiaridade biótica é fruto do longo isolamento geográfico do local. Madagascar nunca esteve ligada a outra grande massa de terra desde que se separou da Índia, cerca de 90 milhões de anos atrás, e está separada do vizinho moderno mais próximo, a África, por aproximadamente 160 milhões de anos. Durante muitas décadas, a pequena quantidade de fósseis de animais terrestres encontrados na ilha fez com que pouco se soubesse sobre a origem e evolução desses seres únicos.

Enquanto nossa equipe de pesquisas explorava as rochas do Triássico e do Jurássico, outros grupos, liderados por David Krause, da Universidade do Estado de Nova York em Stony Brook, desenterravam um tesouro de fósseis mais recentes no noroeste da ilha. Esses fósseis, alguns com aproximadamente 70 milhões de anos, incluem mais de três dúzias de espécies, nenhuma delas aparentada de maneira muito próxima com os animais malgaxes modernos. Isso indica que a maioria dos grupos de vertebrados modernos migrou para a ilha depois dessa altura.

O melhor candidato a ser a origem da fauna única de Madagascar é a África. Mas as faunas modernas das duas massas de terra são muito diferentes. Elefantes, leões, antílopes, zebras, macacos e muitos outros mamíferos modernos africanos aparentemente nunca chegaram a Madagascar. Os quatro tipos de mamíferos terrestres que habitam hoje a ilha – roedores, lêmures, carnívoros e os tenrecs, semelhantes a ouriços – parecem ser descendentes de animais africanos mais antigos. Entretanto, não está claro o caminho que esses animais seguiram para passar do continente para a ilha. Animais menores, capazes de agarrar-se à madeira, podem ter flutuado com restos de árvores, arrancados durante tempestades, atravessando o canal de Moçambique. É possível também que quando o nível do mar estivesse mais baixo esses animais possam ter seguido um caminho misto, andando e nadando, passando por uma série de elevações hoje submersas, a noroeste da ilha.

Em conjunto com Anne Yoder, da Faculdade de Medicina da Universidade Northwestern, e outros, estamos usando a estrutura do DNA de animais modernos de Madagascar para tentar resolver a questão. Essas análises têm o potencial de demonstrar se esses mamíferos modernos chegaram à ilha aos poucos, sozinhos ou em grupos isolados, ou se houve um episódio único, com uma grande migração.

Por J.J.F. e A.R.W.,“Madagascar: A Natural History”, de Ken Preston-Mafham, prefácio de sir David Attenborough, Facts on File, 1991.

“Natural Change and Human Impact in Madagascar”, editado por Steven Goodman e Bruce Patterson, Smithsonian Institution Press, 1997.

“A Middle Jurassic Mammal from Madagascar”, de John Flynn, Michael Parrish, Berthe Rakotosaminimanana, William Simpson e André Wyss, em Nature, Vol. 401, páginas 57-60, 2 de setembro de 1999.

“A Triassic Fauna from Madagascar, Including Early Dinosaurs”, de John Flynn, Michael Parrish, Berthe Rakotosaminimanana, William Simpson, Robin Whatley e André Wyss, em Science, Vol. 286, páginas 763-765, 22 de outubro de 1999.

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