Tecnologia de combate a caça ilegal ajuda África do Sul a localizar casos de coronavírus e a sair da quarentena
No dia 1 de maio, a África do Sul começou a lentamente abrir suas lojas e sua economia, após uma quarentena de cinco semanas para limitar a propagação da COVID-19. A chave para esse relaxamento das restrições, dizem o governo e os cientistas, é um plano que consiste em localizar rapidamente novos focos da doença e isolá-los antes que eles se propaguem. Para conseguir isso, o governo conta com tecnologia que integra diferentes dados sobre a saúde e a localização de indivíduos em todo país, uma ferramenta baseada em um software que foi utilizada para identificar focos de caça ilegal a rinocerontes nos parques nacionais da África do Sul. O governo também reuniu uma força de 60 mil agentes da área de saúde comunitária para testar as pessoas para sintomas da COVID-19, e localizar aqueles que já tiveram contato com uma pessoa infectada.
Nesse país de 59 milhões de pessoas, cerca de 10 mil testaram positivo para o novo coronavírus no início de maio, e mais de 190 morreram. Cientistas dizem que a rápida implantação da quarentena — que começou no fim de março, duas semanas após o primeiro caso detectado — diminuiu o contágio do vírus. Mas agora, com o desemprego crescendo e a ameaça de uma catástrofe econômica, a África do Sul começou a reabrir, seguindo um processo de cinco passos. Inicialmente, o país começou pelo estágio cinco do plano, no qual todos ficavam confinados em suas casas com exceção dos profissionais essenciais, e a maioria do comércio seguia fechada. A nação está agora no quarto passo, no qual indústrias como a da mineração podem operar em capacidade limitada, e cidadãos têm permissão para comprar roupas de inverno e a receber entregas de fast-food. No último passo, a maioria das atividades retornará.
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Mas relaxar as restrições provavelmente significará um aumento nos casos, diz especialistas que estão alertando o governo. “Eu acredito que veremos diversos surtos”, diz Salim Abdool Karim, um epidemiologista e membro do comitê de conselho ministerial à COVID-19 da África do Sul, em uma reunião on-line um dia antes da reabertura começar. A Academia de Ciência da África do Sul declara que mesmo antes de começar a pandemia de COVID-19, o sistema de saúde do país já passava por tensão, por conta da maior epidemia de HIV do mundo e devido a uma epidemia de tuberculose em andamento. Para evitar a superlotação de hospitais, as autoridades pretendem conter os surtos localizados o mais rápido possível. “Testar, localizar e cuidar — esse é o básico”, diz Tolullah Oni, uma epidemiologista na Universidade de Cambridge. “Você pode ter toda a tecnologia incrível do mundo. Se você não estiver testando as pessoas, e você não estiver localizando, vão ser apenas informações incompletas entregues em uma maneira legal”.
Mas tecnologia é uma das partes principais da estratégia do país. O Conselho Nacional para Pesquisa Científica e Industrial está usando um sistema que combina dados múltiplos, chamado Command and Control Collaborator (Cmore), que foi empregado como uma ferramenta de combate à caça clandestina. A África do Sul abriga 80% dos rinocerontes da África, que foram atingidos por consórcios de caça que assaltam os parques nacionais do país, invadindo áreas de vida selvagem que se espalham por cerca de 37.000 quilômetros quadrados (uma área maior que a de Taiwan). O Cmore é um sistema de coleta e análise de dados para alertar aos guardas florestais, que não conseguem estar em todos os lugares, sobre quais regiões estão sendo vítimas de atividades ilegais. Por exemplo, um guarda pode encontrar um buraco em uma cerca do parque e fazer pelo celular o upload de uma fotografia, da descrição da violação e onde ocorreu para o Cmore. Esse novo dado é então combinado com outros alertas suspeitos que possam ter sido enviados por outras pessoas, junto com qualquer histórico de caça ilegal que já ocorreu na área, a localização de outros guardas florestais e os sinais obtidos por sensores de temperatura que detectam o calor corporal de pessoas e animais na área. Essa visualização em tempo real permite que os funcionários localizem possíveis ameaças e decidam se devem enviar equipes maiores para interceptar criminosos suspeitos.
O governo utilizou esse sistema básico e o redesenhou para coletar dados relevantes para a pandemia de COVID-19. Agora, o programa adaptado reúne informações como estatísticas sobre a propagação demográfica da população do país e os dados de saúde dos pacientes que foram testados. Aproximadamente 340 mil sul-africanos foram testados para infecções virais, e mais de sete milhões foram testados por agentes comunitários para encontrar sintomas. Esses dados estão todos inclusos em uma base que alimenta o novo sistema. Se uma pessoa for infectada, as autoridades de saúde recebem um alerta e informações sobre o endereço dela, e começam a rastrear aqueles que estiveram recentemente em contato com a pessoa. Em alguns casos, as autoridades auxiliadas pelo rastreamento via celular: leis recentes obrigam os provedores de telefonia a entregarem a localização de possíveis contatos, um processo que também está sendo utilizado em Israel.
Mas diferentemente de Israel, onde esses dados são coletados pela agência de segurança doméstica Shin Bet, a África do Sul mantém as informações com sua agência de saúde. “Nosso uso da localização de contatos não visa a segurança, e isso representa uma salvaguarda”, diz Jane Duncan, uma especialista em liberdade de expressão na Universidade de Joanesburgo, na África do Sul. Manter a base de dados somente para a agência de saúde reduz a probabilidade de que membros da polícia ou da segurança nacional acessem esses dados com fins de espionagem ou por razões políticas — uma possibilidade que preocupa críticos da localização digital.
A metodologia empregada pela África do Sul reforça o processo já existente de monitoramento. Ele envolve 60 mil trabalhadores da área da saúde, que vão de porta em porta nas comunidades para perguntar aos residentes se eles tiveram sintomas de COVID-19, como altas temperaturas e tosse, e encaminham os possíveis casos para que se submetam a testes. “A pesquisa em casas é parte essencial da vigilância ativa para entender transmissão em comunidades [e] gerar mapas geoespaciais de distribuição” para focar as intervenções, diz Quarraisha Abdool Karim, uma epidemiologista de doenças infecciosas na Escola de Saúde Pública Mailman, da Universidade de Columbia, e da Universidade de KwaZulu, na África do Sul. Ela desenvolveu alguns dos procedimentos da pesquisa. Trabalhadores visitaram cada residência em uma área e, utilizando celulares ou tablets, capturaram suas localizações por GPS e a demografia de seus habitantes. Eles também procuram por seis sintomas. “Se alguém na residência reportar dois ou mais desses sintomas, eles são encaminhados a uma unidade fixa ou móvel de saúde [para realizarem testes de laboratório]”, diz Abdool Karim.
Das sete milhões de pessoas monitoradas pelo programa, mais de 72 mil foram encaminhadas para testes. O país está realizando em média cerca de 16 mil testes por dia. Essa capacidade se dá, em grande parte, devido a r infraestrutura existente criada para monitorar HIV e tuberculose na população. A África do Sul tem mais de 180 locais que realizam testes.
Entretanto, para que o sistema inteiro trabalhe para conter focos da doença, tanto a tecnologia de coleta de dados quanto a pesquisa precisam se complementar. E ainda não se sabe se essa exigência está sendo cumprida. Bruce Bassett, um cientista de dados e matemático na Universidade de Cape Town na África do Sul, alerta que “mesmo se o sistema [adaptado do Cmore] funcionar perfeitamente, um provável desafio será integrá-lo efetivamente com as operações e a logística”. Conforme aumentam os casos, o sistema de saúde será pressionado para estar à frente deles, é o que alertam cientistas e funcionários da saúde. O país terá dificuldade em incrementar sua capacidade de triagem, porque não produz nenhum de seus instrumentos, apenas os importa. Por isso, a testagem deve ser feita com cuidado.
Alguns pesquisadores se preocupam que os casos de COVID-19 reportados na África do Sul não reflitam a extensão completa da epidemia, o que vai tornar difícil a contenção utilizando as medidas planejadas. Alex van den Heever, um especialista em políticas de saúde da Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, diz que os números existentes são “incompativelmente” baixos, por conta da ineficiência dos procedimentos de localização e testagem. Ele acrescenta que o governo está mantendo os dados de COVID-19 apenas para si, e os pesquisadores independentes não conseguem avaliar os números. “Não é assim que se lida com uma epidemia. É preciso ser mais aberto, mais democrático e permitir revisões e comentários críticos”, van den Heever diz.
Oni de Cambridge, por outro lado, está esperançosa. “A África do Sul está isolada no sentido de possuir o potencial de alavancar a tecnologia, além da experiência com o básico do controle de infecções — a questão de ir de porta em porta, a parte sem glamour — esse é o fundamento”, ela diz. “A África do Sul possui essas duas realidades. E se conseguirmos fazer elas trabalharem juntas, então haverá uma boa chance de que as coisas deem certo.”
Sarah Wild
Publicado em 14/05/2020