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Sonda revela interior de Marte com precisão inédita

Estudo de ondas sísmicas de martemotos mostra diferenças no interior do planeta. Cientistas chegam a cogitar que Marte e a Terra podem ter se formado por vias diferentes.
interior de marte

Ilustração do interior de Marte. Nela, as ondas sísmicas (linhas vermelhas), propagando-se de um “martemoto” (ponto vermelho), viajam pela subsuperfície. Elas,assim, refletem no núcleo de ferro-níquel do planeta e alcançam a InSight (ponto branco). Créditos: Chris Bickel/Science

O que o planeta vermelho esconde? Embora tenha apenas um décimo da massa da Terra, Marte parece ter sido, assim como nosso mundo, um planeta habitável  isto é, capaz de abrigar vida. Essa constatação faz os cientistas se questionarem perguntarem se a semelhança  entre os planetas está em seus núcleos. Será que, visto em suas “entranhas”, Marte se mostraria como uma espécie de espelho reduzido da Terra, ou será que a semelhança entre os dois se limita a aspectos de sua superfície?

Indícios fascinantes já haviam sido obtido a partir de dados gravitacionais fornecidos por missões anteriores. Mas agora o interior de Marte foi devassado de forma inédita, graças a medições sem precedentes feitas pela sonda espacial InSight, da Nasa. Desde sua chegada à superfície marciana, no final de 2018, a InSight tem monitorado as ondas sísmicas que se propagam pelo planeta. Ela usa os ecos das ondas geradas pelos “martemotos” (nome dado aos terremotos que acontecem por lá) para mapear o mundo sob a superfície. Em todo o Universo, só a  Terra e sua lua já foram submetidas a uma análise tão profunda.

Os resultados mostram um mundo com semelhanças e diferenças com o nosso, e nos proporciona uma importante segunda opção de banco de dados para o vastíssimo universo composto pelos planetas rochosos. “A InSight é como se fosse o primeiro telescópio que mira para o interior do planeta”, explica Michael Meyer, cientista-chefe do Programa de Exploração de Marte da Nasa, na sede da agência.

A InSight (cujo nome é o acrônimo para Interior Exploration using Seismic Investigations, Geodesy and Heat Transpor, ou “exploração de interiores usando investigações sísmicas, geodésia e transporte de calor”) não é uma missão marciana comum. Enquanto outras missões, tais como o rover Perseverance, foram enviadas para locais considerados cientificamente ricos, que eventualmente podem ter abrigado vida algum dia, a zona de descida da sonda InSight em Elysium Planitia é considerada comum, descrita por alguns como um mero “estacionamento”. Por ser plano e liso, quase sem nada de interessante, além de rochas espalhadas e crateras de impacto, tratava-se do lugar perfeito para estudar o interior marciano.

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O instrumento denominado Experimento Sísmico para Estrutura Interior (SEIS), construído pela agência espacial da França e colocado suavemente na superfície pelo braço robótico da InSight em dezembro de 2018, foi envolto por um escudo em cúpula. Isso possibilitou a detecção de ondas que se movem através de Marte sem interferência do vento ou de tempestades de poeira. O SEIS “consegue ​​perceber vibrações em escala atômica”, disse Andrew Lazarewicz,do Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Em 1976, ele participou de uma tentativa de detectar ondas sísmicas com um sismômetro no módulo de pouso Viking 2, da Nasa.

Em uma série de artigos publicados na revista Science, os pesquisadores descrevem como usaram este instrumento para rastrear ondas sísmicas causadas por dezenas de martemotos detectados no interior de Marte. Possivelmente, esses eventos foram causados ​​por meteoritos que atingiram a superfície do planeta, ou pela agitação de magma (alguns foram detectados próximos da Cerberus Fossae, uma formação geológica que exibe sinais de atividade vulcânica recente). Com magnitude inferior a 4, todos esses terremotos foram tão pequenos que dificilmente seriam perceptíveis na Terra. Mas o SEIS conseguiu registrá-los claramente. Isso permitiu aos pesquisadores rastrearem suas reverberações através das camadas internas de Marte até o seu núcleo, revelando o que estava acontecendo lá dentro.

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Simon Stähler, do Instituto de Geofísica do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique, e seus colegas mediram os reflexos das ondas no núcleo para calcular qual seria seu tamanho e sua composição. Eles descobriram que o núcleo provavelmente possui um raio de 1.830 quilômetros, sendo centenas de quilômetros maior do que o previsto. E a força das ondas refletidas sugere que elas estavam ricocheteando em um núcleo composto principalmente de ferro fundido e níquel.

Para Stähler, o tamanho do núcleo foi uma surpresa. “As pessoas presumiam que o valor do raio deveria de 1.500 ou 1.600 quilômetros”, com base no fato de que Marte é um pouco menos denso que a Terra, e seu núcleo seria principalmente de ferro e níquel, mais pesado que rochas. Em vez disso, os resultados mostram que a razão entre o raio do núcleo de Marte e o raio planetário é semelhante à da Terra. Isso significa que o núcleo de Marte, com sua densidade relativamente baixa, deve ser enriquecido com outros elementos, como enxofre e oxigênio, que são comparativamente menos abundantes no núcleo do nosso planeta. Porém, ainda não está claro o motivo que faz com que o núcleo de Marte possua uma composição diferente.  “Se presumirmos que Marte foi formado a partir  dos mesmos ‘blocos de construção’ que a Terra, isso não será algo tão fácil de explicar”, disse Stähler.

Voltando sua análise mais para perto da superfície,  Amir Khan, do Instituto de Geofísica, e seus colegas usaram as ondas sísmicas para sondar o manto de Marte, região que está entre o núcleo do planeta e a crosta superficial. Embora a Terra tenha uma camada inferior do manto líquido que fica acima de seu núcleo, não existe uma camada semelhantes em nosso vizinho. “Esse manto inferior não existe em Marte”, disse Khan.

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Em vez disso, acima do núcleo, o manto inferior de Marte se assemelha ao manto superior da Terra, que então dá lugar a uma camada superior, mais fria e frágil, chamada litosfera. A litosfera de Marte, conforme mostra o estudo, tem cerca de 500 quilômetros de espessura, em comparação com a litosfera de aproximadamente 250 quilômetros da Terra. Uma litosfera tão espessa, explica Khan, pode ser o motivo para a ausência de placas tectônicas em Marte nos dias de hoje. Essa estranha configuração das camadas subsuperficiais também poderia explicar o modo como o planeta vermelho perdeu seu calor, pois, ao contrário da Terra, falta uma camada de manto líquido isolante acima de seu núcleo.

Já no nível da superfície, Brigitte Knapmeyer-Endrun, da Universidade de Colônia, na Alemanha, junto com sua equipe,  mediu a espessura da crosta marciana. Eles identificaram duas possibilidades. Uma interpretação dos dados sugere a existência de uma crosta de duas camadas como as da Terra, com uma espessura de 20 quilômetros. Já a outra interpretação indica a presença de três camadas totalizando 39 quilômetros de espessura.

Para o planeta como um todo, os pesquisadores estimam uma espessura da crosta de até 72 quilômetros, várias dezenas de quilômetros mais fina do que o previsto. Se estiver correta, essa estimativa pode abrir portas para que possamos  entender as diferenças fundamentais entre as formações da Terra e de Marte . “A maior parte da crosta é muito antiga e tem origem nos primeiros anos do planeta. Já na Terra, acontece um processo de reciclagem, devido às placas tectônicas”, disse Knapmeyer-Endrun.

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Os resultados revelam diferenças intrigantes entre a Terra e Marte. “O que eles fizeram com apenas um instrumento é notável”, disse Lazarewicz. Embora sejam planetas rochosos que se formaram relativamente próximos do Sol, esses dois astros podem não ter se formado da mesma maneira. Eles poderiam ter, digamos, se agrupado a partir de diferentes misturas de materiais que circulavam no disco de gás e poeira do jovem Sol. Além disso, se a InSight conseguir  sondar por meio sísmico o núcleo interno de Marte ao longo de sua missão, é possível que isso ajude a solucionar o antigo enigma de como o planeta perdeu seu campo magnético protetor. Acredita-se que esse evento deve ter ocorrido há talvez quatro bilhões de anos. Ele ainda teria permitido que os ventos solares varressem grande parte da atmosfera do mundo.

Foi só em 1889 que fizemos nossas primeiras medições de ondas sísmicas que passam pelo manto da Terra, obtendo um vislumbre do interior de nosso próprio mundo. Agora, mais de um século depois, temos nossas primeiras medições de outro planeta para compararmos, mesmo que isso possa ser apenas uma prévia do que ainda está por vir, à medida que os cientistas se aprofundem nos dados do InSight. “Agora que sabemos como o núcleo é grande e sabemos mais sobre a crosta e o manto, podemos reinterpretar os eventos que detectamos até então a partir deste modelo do interior que temos agora”, disse Stähler.

Jonathan O’Callaghan

Publicado em 26/07/2021

 

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