Será que nova cepa de coronavírus é mesmo mais infecciosa?
Desde o início da pandemia debate-se se mutações no vírus responsável pela COVID-19 poderiam torná-lo mais capaz de infectar as pessoas. Um artigo em pré-publicação acerca de uma mutação em particular associada às “coroas” do patógeno SARS-CoV-2 chamou atenção anteriormente. Esse artigo já foi revisado e publicado na revista Cell. A pesquisa detalha uma alteração em um amino-ácido do vírus que pode torná-lo mais infecciosos. Mas os virologistas estão longe de um consenso sobre o papel potencial dessa mutação.
A pesquisa indica que uma única alteração no aminoácido, de D (ácido aspártico) para G (glicina), na proteína de coroa do SARS-CoV-2 (usada pelo vírus para aderir às células humanas) é a chave para a capacidade infecciosa do patógeno. “A proteína de coroa desempenha um papel crucial na biologia do vírus”, diz Bette Korber, biologa computacional no Laboratório Nacional de Los Alamos e autora principal da nova pesquisa.
Korber e seus colegas chegaram a tal conclusão após aplicarem múltiplas abordagens para examinar os dois tipos. Primeiro, conduziram uma análise estatística que mostrou como o vírus mutado — geralmente referido como o “tipo G” — se tornou dominante em diversos continentes, saindo-se melhor do que a versão do SARS-CoV-2 original e que ainda existe, chamada por eles “tipo D”. Depois, os pesquisadores testaram a quantidade de vírus em indivíduos com COVID-19 na fundação Sheffield Teaching Hospitals NHS Foundation Trust na Inglaterra. Os resultados mostraram que o tipo G produziu mais do vírus no organismo humano do que o tipo D. Porém, isso não levou a uma taxa de hospitalização maior, o que significa que aparentemente ele não causa uma forma mais grave da doença.
Por fim, os membros da equipe criaram um “pseudotipo” de patógeno, ao incorporarem as proteínas de coroa do SARS-CoV-2, contento tanto os aminoácidos D ou G, em vírus causadores de outras doenças. Em experimentos com culturas de células, eles testaram a capacidade de infecção dos pseudotipos de vírus, e o resultado sugeriu que o tipo G era mais infeccioso. Porém, examinar culturas de células numa placa não é o mesmo que testá-las utilizando “tipos múltiplos de células com um sistema imunológico em um corpo humano”, diz Emma Hodcroft, epidemiologista molecular da Universidade de Basel na Suíça, que não estava envolvida no estudo. “É preciso ter muito cuidado com as conclusões que se pode tirar.”
Os autores do estudo dizem que não estão defendendo que que os esforços em andamento para o desenvolvimento de vacinas e tratamentos — muitos dos quais estão baseados no tipo D original — serão inúteis. “Mas significa que nós precisamos tomar cuidado para checar [os efeitos da mutação] e garantir que não haja impacto”, diz Korber. “Queremos ter certeza de que [terapias e vacinas] funcionem bem contra o vírus de hoje, não o vírus de ontem”.
Enquanto isso, alguns cientistas temem que os resultados estejam sendo considerados com rigor excessivo. Nathan Grubaugh, da Universidade de Yale, e seus colegas, publicaram outra pesquisa na Cell no mesmo dia do estudo de Korber para sugerir limites ao estudo, e sugerir explicações alternativas para as descobertas. Outros debateram as conclusões de Korber e seus colegas através das redes sociais, ainda quando a pesquisa foi lançada inicialmente como pré-publicação.
A pesquisa de Grubaugh sugere que o fato de que um tipo de vírus seja predominante não implica necessariamente que ele seja mais infeccioso. Os pesquisadores escrevem que a frequência mais alta do tipo G “pode ser explicada pelo acaso”. Eles acrescentam que “existem boas evidências de que, no caso do SARS-CoV-2, uma minoria de infecções responde pela maioria das transmissões”, e que a maior pare dos casos de contaminação que geraram os surtos da doença podem ter envolvido o vírus de tipo G. Também é possível que a nova cepa, (que surgiu na Europa) tenha viajado por distâncias maiores e com mais frequência para outras partes do planeta, o que a levou a se tornar dominante globalmente. “Esse tipo de distinção é muito difícil de ser feita”, diz Hodcroft, notando que existem muitos fatores em jogo.
Em relação a quantidade de vírus detectada no corpo humano, o método que a equipe de Korber utilizou “não mede o vírus capaz de infectar, e isso é o que importa para a transmissão”, diz Vincent Racaniello, virologista na Faculdade Vagelos de Médicos e Cirurgiões na Universidade de Columbia, que também não estava envolvido em nenhuma das duas pesquisas da Cell. Em infecções virais, ele diz, “há um período quando o organismo realmente produz vírus infecciosos. Mas então a infecção basicamente para. E o que sobra são vírus degradados que persistem no corpo por um longo período”. A técnica empregada por Korber e seus colegas pode detectar vírus degradados, “então não é um experimento bom o suficiente para provar que [o vírus] esteja gerando a transmissão”, ele acrescenta.
Ainda não se sabe se o tipo G poderá afetar a eficácia de potenciais vacinas e medicamentos. A pesquisa da equipe de Korber mostra que os anticorpos das pessoas que foram infectadas com SARS-CoV-2 combate ambos os tipos. “Esse foi realmente um passo encorajador, apesar de mais pesquisas ainda serem necessárias”, ela diz.
O debate sobre a nova mutação recentemente identificada e suas implicações provavelmente continuará, porque existem vários estudos em pré-publicação que sugerem que o tipo G pode ser mais infeccioso. Mas o estudo de Korber já revisado a publicado até agora a fazer essa afirmação.
“Esse ‘vai-e-vêm’ entre cientistas é normal, e é assim que a ciência evolui”, diz Hodcroft. “Não é uma indicação de que tudo na ciência seja discórdia…. Se você questionar os cientistas, eles vão relatar as mesmas ideias gerais sobre o vírus”.
“Eu não estou dizendo que o que eles estão sugerindo não é plausível”, diz Racaniello. “Isso pode ser provado um dia, e eu ficaria bem com isso”.
Karen Kwon
Publicado em 16/07/2020