Segurança na seleção de anticorpos é desafio crucial na busca da vacina para a COVID-19
A pandemia de coronavírus fez o planeta enxergar o mundo da imunologia. Termos como “imunidade de grupo” e “testes sorológicos” se tornaram de uso corrente. No centro desses conceitos estão os anticorpos. Essas proteínas imunológicas geralmente aparecem durante a segunda ou terceira semana após a infecção, atacando os invasores e impedindo que eles afetem células humanas. Se os anticorpos que alvejam um vírus particular aparecem em uma amostra sanguínea, isso confirma a existência de uma resposta imunológica que pode servir de proteção contra uma nova infecção.
Extrair o anticorpo certo para desarmar o SARS-CoV-2, o vírus responsável pela atual pandemia, é o objetivo de dezenas de desenvolvedores de vacina, muitos dos quais já começaram ensaios clínicos em tempo recorde. Mas funcionários da área de saúde pública e cientistas tomam cuidado para não avançar rápido demais. Em casos raros, esses defensores imunológicos podem agravar a doença ao invés de ajudar a combatê-la.
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Essa preocupação ainda não se materializou nos estados iniciais da produção de uma vacina contra a COVID-19. Ainda assim, com base em pesquisas relacionadas a surtos passados de coronavírus, os produtores de vacinas não enxergam a ameaça como uma possibilidade puramente teórica.
Em geral, o SARS-CoV-2 e seu parente mais velho, o SARS-CoV, entram nas células através de um ponto de acoplamento: um receptor na superfície da célula chamado ACE2. Vacinas que providenciam a imunização logo após a dose produzem anticorpos “neutralizantes” contra as proteínas virais, bloqueando a entrada do patógeno através do ACE2.
Mas não é porque um anticorpo pode impedir que um vírus entre nas células em um experimento de laboratório que ele necessariamente irá fazer o mesmo no corpo, diz Akiko Iwasaki, uma imunologista na Universidade de Yale. Em cenários descritos por ela em um comentário na revista Nature Reviews Immunology, os anticorpos podem ocasionalmente ajudar um vírus a invadir e enganar as células imunológicas que normalmente iriam atacar o patógeno.
Se alguns dos anticorpos produzidos não se ligarem direito ao vírus — ou não estiverem presentes na concentração ideal — eles podem se unir ao vírus e agravar a doença através de um processo chamado de aprimoramento dependente de anticorpo (ADE). Durante a ADE, viroses ligadas ao anticorpo ganham uma entrada pela “porta dos fundos” através dos receptores de anticorpos em macrófagos e outros membros da “tropa de limpeza” celular — na prática, desabilitar as células que iriam combater essas viroses e descartá-las quimicamente. Em alguns casos, esse processo pode ativar uma resposta inflamatória danosa.
De fato, parece que alguns patógenos, incluindo o coronavírus, “encontraram uma maneira de usar o anticorpo como um cavalo de Tróia” para infectar as células que combatem as doenças, diz Iwasaki. Seu laboratório está trabalhando para entender os tipos de resposta imunológica que ajudam as pessoas a se recuperarem da COVID-19 contra aqueles que contribuem para a doença.
Iwasaki sugere que, através da ADE, o vírus possa iniciar uma produção excessiva de proteínas que sinalizam inflamação, chamadas de citocinas, que levam à ocorrência das “tempestades de citocina” que podem promover a síndrome do desconforto respiratório agudo e avarias no tecido do pulmão. Problemas similares também poderiam ocorrem em alguns pacientes com COVID-19 por outras células imunológicas chamadas de neutrófilos.
Os cientistas ainda não têm certeza se a ADE realmente promove tempestades de citocina ou avarias em tecidos relacionadas a imunidade na COVID-19. Eles estão conectando pontos hipotéticos baseados em estudos passados de vacinas experimentais para outros surtos, como a síndrome aguda respiratória grave (SARS) e a síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), nas quais alguns animais imunizados desenvolveram doenças mais graves. Além disso, trabalhos mais antigos de Iwasaki e de outros sugerem que os patógenos que entram nas células através da porta dos fundos são enviados para diferentes compartimentos celulares, que são ricos em receptores que percebem as ameaças microscópicas e produzem moléculas ligadas a tempestades de citocina. “Esse é um fato muito conhecido”, diz Iwasaki. “Por que o SARS-CoV-2 não seria reconhecido dessa maneira?”
Algumas pesquisas sobre surtos de coronavírus mais antigos de fato apoiam a ideia de que anticorpos poderiam acionar uma patologia inflamatória ao cooptar macrófagos. Em uma análise em macacos publicada no ano passado na JCI Insight, pesquisadores na China mostraram que os anticorpos de SARS-CoV do soro de animais vacinados eram suficientes para causar danos aos pulmões em um conjunto de animais não vacinados. Os anticorpos transferidos pioraram a doença e parecem ter alterado os macrófagos do pulmão que protegem, para um estado patogênico, como foi dito por um exame da atividade genética das células imunológicas.
A ADE passou a ser vista como um problema potencial para outras vacinas. Algumas vacinas para dengue e para o vírus sincicial respiratório provocaram reações imunológicas graves. Anticorpos poderiam ser uma das causas, mas pesquisadores de vacinas dizem que danos relacionados a imunologia no tecido são um problema com maior potencial. Os animais infectados com o vírus da SARS após a vacinação tiveram seus tecidos do pulmão e fígado danificados. Enquanto isso, a ADE foi documentada em experimentos de laboratório, então o fenômeno “é um pouco mais teórico”, diz Peter Hotez, co-diretor do Centro para Desenvolvimento de Vacina do Hospital das Crianças de Texas, que está trabalhando para que seu trabalho para a vacina de SARS dê lugar a uma vacina para a COVID-19.
Embora seja possível que anticorpos pouco adequados possam causar inflamação e danos ao tecido, ele diz que tais problemas também possam resultar da atividade anômala de células T, que são outro combatente contra os vírus no arsenal do sistema imunológico. Um estudo publicado em 14 de maio na revista Cell, sugere que as células T específicas contra o SARS-CoV-2, quando funcionam normalmente, podem ajudar as pessoas a combater a COVID-19.
Os cientistas estão muito cientes do perigo potencial da ADE. É “algo que talvez possa acontecer”, diz Paul Henri Lambert, um cientista de vacina na Universidade de Geneva e consultor da Coalizão para Inovação em Preparo de Epidemias (CEPI). “Mas neste estágio, nós não temos nenhuma evidência que isso seja um problema para uma vacina contra SARS-CoV-2”.
A Moderna, uma empresa de biotecnologia em Massachusetts que publicou descobertas preliminares de um ensaio clínico em estágio inicial de sua vacina para COVID-19 baseada em RNA na semana passada, não encontrou nenhum problema sério de saúde nos participantes do estudo. Outra vacina para COVID-19, que foi testada em um ensaio clínico inicial na China, aparenta ser segura e produziu anticorpos neutralizantes na maioria dos 108 participantes do estudo, de acordo com um estudo em 22 de maio na revista Lancet.
Diversas outras vacinas para a COVID-19 foram testadas em primatas não-humanos. Uma foi produzida a partir de um vírus desativado por pesquisadores na China, que relatou em 6 de maio que a dose mais alta conseguiu gerar um efeito protetivo. A equipe não encontrou nenhuma evidência de avanço na doença em quatro macacos, analisados sete dias após serem infectados com SARS-CoV-2. Um trabalho ainda não-revisado sobre uma segunda vacina, desenvolvida utilizando a proteína do SARS-CoV-2 responsável pela entrada viral nas células hospedeiras, foi publicado no servidor de pré-publicações bioRxiv no dia 13 de maio. Também não houve nenhum sinal de agravamento da doença. E, em um estudo de 20 de maio com macacos imunizados com outra candidata (uma vacina de DNA), os cientistas reportaram que eles “não observaram doenças clínicas mesmo com vacinas inadequadas que falharam em proteger”.
Stanley Perlman, um físico e imunologista viral na Universidade de Iowa, participou de comitês para a vacina de COVID-19 organizadas pelo Instituto Nacional de Saúde e pela Organização Mundial da Saúde. Esses comitês discutiram exaustivamente os possíveis riscos impostos pela ADE, ele diz. Mas dado a urgência da pandemia, Perlman acrescenta, “as pessoas dizem que nós temos que ter uma vacina para ontem. Mas, na outra mão, você tem pessoas dizendo ‘nós temos que tomar muito cuidado’, então como balancear isso? Nós não podemos abrir o país até que tenhamos uma vacina, até termos imunidade em grupo. Então se torna uma questão difícil: qual o curso de ação mais correto?”.
A pergunta real é se as vacinas para a COVID-19 vão causar ADE quando distribuídas para centenas de milhares de pessoas. Essa preocupação também é compartilhada por pesquisadores que testam o plasma sanguíneo de pacientes recuperados como maneira de tratar pessoas, seguramente, hospitalizadas com a doença. A ADE não foi relatada até agora em um estudo de 5000 pacientes administrados com o plasma convalescente pelo país, que foi publicado em 14 de maio no servidor de pré publicações medRxiv.
As análises de respostas imunológica em voluntários de ensaios clínicos e em primatas não-humanos, avaliados antes de seguir para a próxima fase de certa investigação, devem ser o suficiente para identificar vacinas com risco potencial para aprimoramento imunológico, diz Lambert. Hotez acredita que será importante observar por ADE e reações inflamatórias perigosas quando imunizar os participantes de estudo em áreas onde o vírus está se espalhando. “Se for ocorrer algum, será provavelmente lá”, ele diz. “Em indivíduos que são vacinados e depois expostos ao vírus, será preciso monitorar a função do fígado e do pulmão, para garantir que não há piora”.
Além das vacinas, a ADE poderia influenciar outros aspectos da resposta imunológica à SARS-CoV-2. Jorge Caballero, anestesiologista da Universidade de Stanford que organiza os dados e o apoio de engenharia para a vigilância da COVID-19, se questiona se o processo poderia estar por trás de outras manifestações da doença, incluindo os “dedos de COVID”, a angústia respiratória ligada a patologias no pulmão e certos problemas misteriosos de inflamação que atacam algumas crianças que têm a doença. Dados que estão aparecendo “sugerem que a ligação comum pode ser um fenômeno pouco compreendido conhecido como melhora dependente de anticorpos”, ele diz.
Esther Landhuis
Publicado em 28/05/2020