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Relatório da ONU mostra intensa redução da biodiversidade

Objetivos de conservação estabelecidos em 2010 foram apenas parcialmente alcançados. Janela de tempo para impedir extinção de quase um milhão de espécies nas próximas décadas está chegando ao fim.

Crédito: estivillml

Segundo um novo relatório das Nações Unidas divulgado esta semana, a estratégia global para reverter a perda da biodiversidade através da execução de objetivos em série falhou.  

As 20 Metas de Aichi para a Biodiversidade foram estabelecidas a partir da  Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU, que foi estabelecida durante uma conferência no Japão em 2010. O objetivo era proteger a flora e a fauna do globo  até 2020. Segundo a ONU, se essa intervenção não corresse, aproximadamente um milhão de espécies poderiam desaparecer nas próximas décadas, ampliando o que os cientistas estão chamando de Extinção em Massa do Holoceno: trata-se do sexto eveno de extinção em massa de formas de vida, desta vez causado pela ação humana. No término da convenção, 170 países e regiões concordaram am adotar os objetivos, e em criar suas próprias estratégias nacionais de conservação que se espelhassem ou se relacionassem com os objetivos da Aichi. Mas, de acordo com a recém-publicada quinta edição do relatório Panorama da Biodiversidade Global da ONU, a comunidade internacional como um todo não conseguiu cumprir sequer um dos objetivos dentro do prazo estipulado, e nenhuma nação teve sucesso em adotar todas as 20 dentro de suas fronteiras. 

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Muitas atividades humanas podem diminuir a biodiversidade, incluindo o desflorestamento, poluição e a introdução de espécies invasoras. As Metas de Aichi propostas para combater as perdas eram igualmente diversas. Segundo os especialistas,  os países participantes teriam falhado, em grande parte, porque tiveram dificuldades de fomentar a conservação enquanto mantém o foco em suas economias e no aumento de suas populações.  

A falha no combate à perda da biodiversidade segue em paralelo com a falta de vontade política de cada país em agir para manter o aquecimento global abaixo de um aumento de dois graus Celsius, conforme foi estabelecido no Acordo de Paris em 2015. Os Estados Unidos vão  deixar o acordo oficialmente no dia 4 de novembro, e o país nunca ratificou a Convenção sobre Diversidade Biológica. E mesmo que  a China esteja fazendo grandes avanços para deixar os combustíveis fósseis, seu projeto de 6 trilhões de dólares chamado Iniciativa do Cinturão e Rota impõe riscos sérios a flora e a fauna situada dentro de suas fronteiras. David Cooper, secretário executivo da Convenção para Diversidade Biológica e autor do novo relatório, diz que diante de interesses tão antitéticos, o resultado das Metas de Aichi estão infelizmente “alinhados com o que esperávamos”, particularmente considerando o quarto relatório, publicado em 2014, que já trouxe um alerta quanto à ausência de progresso no cumprimento das metas.  

“Francamente,  perdemos tempo no começo da década quando os países desenvolveram seus objetivos nacionais”, disse Cooper. Na metade da década, os países estavam finalmente tendo ganhos, mas não o suficiente para cumprir o prazo. “Precisamos pensar sobre o que podemos fazer para ajudar os países a começarem a agir logo, e avançarem a partir do ritmo que temos agora”, acrescenta Cooper. 

Ele também culpa incentivos perversos. Embora  muitas nações tenham mobilizado com sucesso recursos financeiros visando a conservação da biodiversidade, os fundos foram minados por fatores como subsídios para combustíveis fósseis e pesca em excesso, diz Cooper. “Houve progresso, mas foi insuficiente para abordar os fatores que levam à perda [de biodiversidade]: a mudança climática e a exploração de recursos, que são causados por padrões de consumo mais amplos”, ele acrescenta. Por exemplo, os subsídios ligados a destruição de floresta tropical no Brasil e na Indonésia são maiores do que os investimentos para os esforços de reflorestamento. 

Embora os países não tenham cumprido por completo as metas Aichi, muitos tiveram avanços significativos. De acordo com o novo relatório, apenas em 11% dos objetivos nacionais não foi registrado nenhum progresso. Seis metas foram parcialmente alcançadas até o prazo de 2020. A meta 11, que estimulava  os países a protegerem 17% dos recursos superficiais e subterrâneos de água, além de 10% das áreas costeiras e marinhas,  recebeu bastante atenção, e proporcionou talvez as  alterações mais concretas. Levando-se em conta apenas a área da superfície, a Meta 11 será alcançada globalmente até o fim do ano, e aproximadamente 10% dos países ultrapassarão seus objetivos. Mesmo assim, os críticos dizem que áreas protegidas que foram estabelecidas recentemente não salvaguardam as regiões mais diversas  em espécies. Ao invés disso, foram implementadas onde era mais fácil os governos conseguirem bloquear o acesso à terra ou à água. 

O novo relatório notou outros progressos também. “A Indonésia impediu a pesca ilegal, o que gerou muitas melhoras na quantidade de peixes na água”, diz Cooper. Mas os resultados  alcançados ainda não bastam  para parar a onda de perda da biodiversidade. Entre 1970 e 2016, o tamanho médio das populações selvagens decaiu em 68%, de acordo com Relatório Planeta Vivo 2020, da WWF.  Se não houver alguma mudança,  a biodiversidade irá continuar a diminuir até 2050 e depois, devido à produção não sustentável, ao consumo dos recursos naturais, ao aumento populacional e a outras tendências atuais.   

 Cientistas e políticos estão agora avaliando  o melhor caminho para impedir a perda da biodiversidade o mais rápido possível. Em um estudo publicado no dia 9 de setembro na Science Advances, pesquisadores Universidade Tsinghua, em Pequim, propuseram  que os países criem “Zonas de custo efetivas (ZCE)”, que busquem a conservação com pouco impacto humano. Eles argumentam que as atuais estratégias de conservação atribuem  muitos recursos para regiões  onde é pouco provável que  os políticos busquem  favorecer medidas de conservação, tais como áreas agrícolas. Para identificar zonas onde a conservação seja plausível, os pesquisadores buscaram sobrepor os mapas globais de biodiversidade com outros que mostram regiões com  baixo impacto humano. A partir de 2020, menos de um quarto dessas CEZs estavam protegidas. 

“Seis países ocupam metade das CEZs ao redor do mundo — A Federação Russa, Austrália, Canadá, Brasil, China e os Estados Unidos”, nora Rui Yang, arquiteto na Universidade Tsinghua e autor principal do estudo. 

É vital que se faça um planejamento minucioso  para o uso da terra, mas o crescimento populacional, e a consequente  pressão nos sistemas de produção de alimentos, irão desafiar ainda mais qualquer planejamento, diz David Leclère, um cientista ambiental no Instituto Internacional para Análise de Sistemas Aplicado. Em uma pesquisa publicada na Nature na semana passada, ele e seus colegas descobriram que, se for possível logramos um aumento sustentável na produção agrícola e no mercado agrícola, reduzirmos o desperdício de comida e adotarmos uma dieta baseada em plantas, pode ser possível evitar  mais de dois terços das futuras perdas de biodiversidade, e as populações vivendo em ambiente  selvagem começariam a aumentar por volta de 2050. Mas Leclère alerta que a mudança climática pode atrapalhar tais projeções. 

“Embora atualmente as mudanças climáticas afetem entre  duas e três vezes menos espécies do que o uso de terra, nós sabemos que a ameaça irá aumentar no futuro”, ele diz. “Se adotarmos as projeções mais pessimistas sobre a mudança climática e seus impactos, é possível que não seja mais possível reduzir  a curva [da perda da biodiversidade].” 

Outros questionam por completo as políticas internacionais para a conservação. Em um estudo na Conservation Letters publicado em abril, pesquisadores revisaram políticas internacionais para biodiversidade e sustentabilidade e descobriram que a maioria delas também buscava o crescimento econômico, apesar de evidências substâncias de que tal crescimento contribui diretamente para a perda de biodiversidade. Eles concluíram que “estamos dando  atenção indevida para questão de como o crescimento pode ser dissociado da perda de biodiversidade.”

  “Nós vemos o crescimento como um bem em si mesmo”, diz Katharine Farrel, economista ecológica na Universidade de Rosario, na Colômbia, e coautora do estudo. “O que precisamos é de uma economia que não seja baseada no acúmulo de dinheiro, mas que na lógica viva do bem-estar.” Ela observa, entretanto, que “existem imensos interesses associados à produtividade econômica que dependem  da destruição ecológica. Esses interesses sofrerão perdas  se alterarmos nossas estruturas econômicas para algo focado em benefícios ecológicos.” 

Cooper reconhece que não há evidências fortes quanto a uma dissociação absoluta entre as duas coisas. Ele diz que, para além de buscar por formas de melhorar a produção e o consumo de recursos, é preciso considerar também uma redução no consumo. “Bo aparte do mundo enfrenta carência no acesso a muita coisa, seja comida, água ou outros materiais”, diz Cooper. “Isso significa que a equidade  será um elemento importante para que se possa avançar.” 

A Convenção para a Diversidade Biológica está atualmente trabalhando no seu panorama da Biodiversidade Global pós-2020, que será adotado durante a próxima reunião em Kunming, China, em maio de 2021. A esperança é de que esse panorama  crie um novo conjunto de metas para a biodiversidade, para remediar as falhas das metas de Aichi e virar o jogo antes que seja tarde. 

“É necessário agir agora”, diz Cooper. “Os próximos 10 anos serão vitais para a agenda da biodiversidade, assim como serão para a mudança climática,  se vamos impedir uma sexta  extinção em massa.” 

Gloria Dickie

Publicado em 17/09/2020