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Queda de foguete chinês evidencia impacto ambiental de detritos espaciais

O lançamento de foguetes e a reentrada de detritos espaciais na atmosfera contribui para as mudanças climáticas e a destruição da camada de ozônio. Não é mais possível ignorar essas consequências.
Foguete chinês.

Foguete Long March 5B, lançado no dia 21 de julho para transportar um módulo da estação espacial Wenchang. Após completar sua missão, os destroços de um propulsor caíram no Oceano Pacífico no dia 30, em meio à críticas internacionais. Crédito: XINHUA

A viagem espacial, apesar de suas origens nas disputas da Guerra Fria, é frequentemente retratada como um empreendimento sempre benéfico, que, de alguma forma, ajuda toda a humanidade: satélites provêm conectividade e um inestimável conhecimento de nossos entornos em escala planetária. Telescópios espaciais e sondas interplanetárias nos trazem descobertas transformadoras sobre nosso lugar no Universo. Missões astronáuticas ajudam a satisfazer nosso desejo inato por exploração e, ao mesmo tempo, inspiram novas gerações de cientistas e engenheiros. E todos começam da mesma forma: montados em foguetes em direção ao espaço. 

Mas, indo contra essas avaliações generosas, esse último detalhe pode, mais cedo ou mais tarde, prejudicar a vida no planeta. De forma simples, o problema é que tudo o que vai, volta, nem que seja na forma de propulsores já utilizados de foguetes ou de satélites passando por uma reentrada violenta na atmosfera — ou até em quedas e pousos forçados. 

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Considere o lançamento de um módulo da estação espacial Wentian, da China, em 24 de julho, a bordo de um enorme foguete Long March 5B. Depois de transportar a Wentian à órbita com sucesso, o estágio superior do foguete de 23 toneladas foi abandonado, deixado para cair sem controle de volta na Terra e impondo uma ameaça improvável, ainda que real, para qualquer um em seu caminho. 

Uma morte dramática por um foguete em queda livre não é o único risco, no entanto. A maior ameaça vem da quantidade cada vez maior de detritos espaciais queimando na frágil atmosfera superior de nosso planeta — com impactos de longo termo no clima planetário e na zona estratosférica. Ainda não está claro o quão significativos são esses impactos, porque o problema quase não foi estudado. Mas a situação está no caminho para se tornar mais urgente conforme novas aplicações lucrativas e de baixo custo, como mega constelações de satélites, elevam as taxas de lançamento espacial ao redor do globo. 

Em resumo, a ascensão do voo espacial no século 21 pode ser a fagulha para uma “tragédia dos bens-comuns” da era espacial, com consequências se desdobrando ao longo de milênios — e cientistas estão começando a dar avisos. 

Impactos estratosféricos

Recentemente, no Earth’s Future, pesquisadores da Universidade  College London (UCL), da Universidade de Cambridge e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, exploraram os impactos do lançamento de foguetes e da entrada de objetos na atmosfera. 

A equipe relatou que partículas de fuligem liberadas pelos foguetes são quase 500 vezes mais eficientes em armazenar calor na atmosfera, gerando, portanto, um maior impacto para o aquecimento global do que aviões e outras fontes emissoras de carbono na superfície. A fuligem é “emitida por foguetes na queima de combustíveis com base em hidrocarbonetos”, afirma Robert Ryan, coautor do estudo da UCL. “E fuligem emitida diretamente na estratosfera é muito eficiente em causar aquecimento.”

A equipe também estudou como a reentrada na atmosfera pode danificar a tênue camada de ozônio estratosférica que ajuda a proteger a Terra da radiação ultravioleta. Os detritos de equipamentos aeroespaciais em queda produzem óxidos de nitrogênio capazes de destruir o ozônio conforme o ar ao seu redor é aquecido, eliminando esse gás protetor da estratosfera. 

O efeito atualmente é pequeno na escala global, afirma Ryan, mas, na atmosfera superior, “a quantidade de depleção do ozônio [de voos espaciais já] é preocupante”. E pior: componentes de foguetes em reentrada podem ter composições complexas e muito variadas — e os processos químicos resultantes de cada coquetel de ingredientes ainda não foi bem definido. 

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“Atualmente, nós estamos investigando o efeito de outros poluentes provenientes da queima de materiais de satélites durante seu retorno à Terra”, afirma Eloise Marais, coautora do estudo e professora associada de geografia física na UCL. O que é certo, adiciona ela, é que o setor espacial tem uma “miríade de impactos” na atmosfera terrestre. 

Outra certeza, afirmam especialistas, é que os impactos atmosféricos do voo espacial devem aumentar conforme o número de lançamentos e reentradas de foguetes sobe. O recorde de atividades do setor espacial incentivou outra equipe de pesquisadores, da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA), a modelar como o aumento resultante em fuligem pode afetar os padrões de circulação atmosféricos. Seu estudo, publicado no Journal of Geophysical Research Atmospheres, descobriu mais uma maneira com que essas atividades podem depletar o ozônio e agravar as mudanças climáticas. 

“Nós avaliamos cenários hipotéticos em relação ao número de foguetes sendo lançados nas próximas décadas e como o clima pode responder”, afirma Christopher Maloney, autor principal do estudo e pesquisador na NOAA e no Instituto Cooperativo para Pesquisa em Ciências Ambientais em Boulder, Colorado. “Nós vimos que haveria um aquecimento estratosférico. A circulação de capotamento na estratosfera desacelera, causando um impacto no ozônio.”

Analisando o problema mais a fundo, Maloney afirma que um “inventário de emissões” dos motores de foguetes seria útil. Esse tipo de catálogo ajudaria a montar um quadro mais completo dos efeitos colaterais dessa indústria na estratosfera. 

A NOAA também está preparando uma análise da reentrada de satélites e seus possíveis impactos no clima. “Há muitas perguntas não respondidas”, afirma Maloney. “Esses tópicos certamente merecem mais investigação.”

Espaço para surpresas (e regulamentação)

O aumento no interesse de pesquisadores é uma notícia bem vinda para Martin Ross, engenheiro de projeto sênior para lançamentos civis e comerciais na Corporação Aeroespacial e um ativista de longa data para estudos dos efeitos climáticos da indústria aeronáutica. 

“Todos esperam que a indústria espacial cresça muito, e esse é o impedimento”, afirma Ross. “Dado o crescimento, nós precisamos diminuir a incerteza para que possamos prever com segurança o futuro que nos aguarda.”

Mega constelações de milhares de satélites são uma das maiores apreensões, afirma Ross, porque a maioria delas é construída para impermanência, constantemente soltando as sondas antigas ou com problemas e então trocando-as por lotes novos recém-lançados. 

Deixando os satélites de lado, isso resulta em uma quantidade razoável de fluxo em “estado-estacionário” de detritos incandescentes despencando pela atmosfera. E alguns deles — ainda ninguém sabe quantos — serão na forma de partículas com menos de um micrômetro que permanecem no ar por longos períodos (em vez de serem eliminadas rapidamente). “Se você assumir que a metade dos [detritos de reentrada das mega constelações] se transforma em poeira de algum impacto na atmosfera, então elas irão competir, se não forem ainda maiores, que o problema dos  lançamentos.”

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Para o desgosto dos pesquisadores, os satélites são abarrotados de partes eletrônicas e células fotovoltaicas contendo metais pesados e compostos exóticos, exibindo ainda mais diversidade química do que foguetes. “[Eles] possuem esses metais estranhos, e não temos ideia da sua reatividade na atmosfera”, afirma Ross. “Há espaço para surpresas.”

Mas obter os dados necessários para evitar surpresas desagradáveis não necessariamente será fácil, afirma Laura Ratliff, do Instituto de Políticas Espaciais na Universidade George Washington. 

Há, por exemplo, uma escassez de medições para algumas das camadas mais externas da atmosfera, onde a transição gradual para o espaço inicia. Muito baixa para ser acessada por satélites, mas muito alta para ser pesquisada por balões meteorológicos, essa região pouco estudada foi denominada como a “ignorosfera”. Ainda assim, ela pode provar-se crucial para quantificar os impactos totais na atmosfera terrestre e seu clima. 

“Eu acompanho essa questão porque acompanho nossa crise climática e tento resolver esses problemas”, afirma Ratliff. “Me parece uma área que está causando danos significativos na atmosfera sem nem mesmo estarmos cientes disso.”

Mesmo que quase todos concordem que vale a pena proteger a atmosfera terrestre, aponta ela, a maioria dos locais em questão escapam da supervisão regulatória nacional e global. “Não há nenhuma agência com ‘sustentabilidade espacial’ em suas prioridades”, afirma Ratliff. “É, em grande parte, um problema dos Estados Unidos nesse momento. Mas será um problema internacional em termos [da abrangência] de seus efeitos.”

Não olhe para cima

Para uma prova visceral da natureza global das consequências negativas das viagens espaciais, olhemos novamente para o propulsor do foguete chinês em queda livre. No momento da escrita deste artigo, a última previsão da Corporação Aeroespacial afirma que o propulsor do Long March 5B deve atingir a Terra pouco depois das 8h00 em 31 de julho, com margem de erro de 24 horas para mais ou para menos. Essa incerteza irá diminuir conforme o foguete continua descendo, mas o momento e local exato de seu impacto são difíceis de prever, considerando que pequenas variáveis podem ter grandes efeitos na queda. (Atualização: os detritos caíram no litoral da Malásia no dia 30/07, às 13h45, horário de Brasília.)

O mais provável é que, assim como a maioria dos detritos espaciais, o propulsor (ou os 20–40% dele previstos para chegar à superfície da Terra intactos) mergulharão no oceano, que cobre 71% do globo. Mas a Corporação Aeroespacial apontou em um post de 26 de julho que há uma “probabilidade não-zero de detritos sobreviventes caírem em uma área populosa — mais de 88% da população mundial vive sob a pegada da possível reentrada de detritos.”

Esse pequeno mas significativo risco está de acordo com as descobertas de um estudo recente publicado na Nature Astronomy, que analisou três décadas de dados para estimar a chance de mortes de humanos causadas por reentradas descontroladas de foguetes. 

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Michael Byers, da Universidade da Colúmbia Britânica, e seus colegas calcularam que, considerando os procedimentos atuais, há uma chance de aproximadamente 10% de um foguete caindo livremente da órbita causar um ou mais ferimentos ou mortes durante a próxima década. (A maioria dos propulsores de foguetes não entram na órbita e caem dentro de uma área bem-definida ao redor do local de lançamento. Já aqueles que atingem a órbita tipicamente acionam seus motores para garantir uma reentrada mais segura, mirando as águas do oceano aberto, e quase sempre se desintegram totalmente durante a reentrada. O estágio superior do Long March 5b, no entanto, não foi projetado para reiniciar seus motores.)

Em termos gerais, os riscos múltiplos — e multiplicando — associados com o boom do setor espacial devem acionar alertas para todos, afirma Moriba Jah, cofundador e cientista chefe do Privateer, um grupo criado para “tratar o ambiente espacial como se nossas vidas dependessem dele”. Steve Wozniak, cofundador da Apple, atua como presidente do Privateer.

“No final de contas, queremos que o ambiente espacial seja mais transparente”, afirma Jah. “O que há lá em cima? A quem pertence? Para que serve? É preciso que seja mais previsível. Agora não temos uma maneira de prever as consequências de nossas ações, sejam elas propositais ou acidentais.”

Em termos de ação regulatória, os tratados que estão em vigor, afirma Jah, possuem interpretações tão vagas que a situação é questionável. “Eu acho que se alguns países pudessem mostrar um pouco de iniciativa, e mostrar maneiras mensuráveis de tentar ser ecologicamente correto, outros países seriam incentivados a se comportar de maneira mais apropriada”, afirma ele.

Leonard David e Lee Billings

Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 29/07/2022; aqui em 01/08/2022.

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