Pouso do Perseverance inicia uma nova era de exploração em Marte
A continuação da exploração humana de Marte viveu hoje seu mais recente momento decisivo, e cientistas ao redor do mundo estão respirando aliviados.
Pouco depois das 17h44, horário de Brasília, um visitante da Terra rasgou o céu claro e frio de Marte em direção a uma estrutura em formato de tigela feita de rocha, poeira e cinzas vulcânicas, com 50 quilômetros de largura e 3,5 bilhões de anos de idade, chamada Cratera de Jezero, que outrora abrigou um grande lago. Sete minutos antes, o visitante havia chegado ao topo da atmosfera do planeta zunindo a quase 20 mil km/h, e perdeu a maior parte de sua velocidade por fricção, protegido por um escudo térmico da bola de fogo que o atrito gerou. A abertura de um paraquedas supersônico, do tamanho de um campo de beisebol, ajudou a desacelerá-lo ainda mais, e a etapa final foi uma descida guiada por um robô com retrofoguetes, denominado sky crane, que usou de cabos removíveis para abaixar suavemente o visitante até que ele descansasse no chão da cratera. Bem acima, uma nave orbitadora monitorava o progresso, aguardando os primeiros sinais que confirmaram o sucesso do pouso, os quais, enviados à Terra à velocidade da luz, chegaram ao nosso planeta cerca de 11 minutos depois.
Finalmente, o rover Perseverance chegou. Concebido há uma década, é fruto dos sonhos de gerações de cientistas. O veículo espacial movido a energia nuclear, que é do tamanho de um SUV, foi lançado em julho de 2020, quando nosso planeta já havia atravessado meses de uma pandemia transformadora, viajou quase meio bilhão de quilômetros em sete meses e sobreviveu a uma aterrorizante descida de sete minutos, para ir do espaço até a cratera de Jezero, onde terá início agora o verdadeiro trabalho duro.
O Perseverance (ou chamado apenas de “Percy”, para abreviar) foi concebido para atuar durante pelo menos um ano marciano (o equivalente a cerca de dois anos terrestres), e dar conta de uma ambiciosa lista de tarefas. Está na lista, por exemplo, explorar o ambiente com lasers de vaporização de rochas e radar de penetração no solo, e gerar imagens panorâmicas de alta resolução, estereogramas em 3-D e close-ups microscópicos, recorrendo ao seu conjunto de câmeras sofisticadas. Outras tarefas incluem ouvir paisagens sonoras marcianas e criar relatórios meteorológicos usando sensores embutidos, testar um dispositivo capaz de fabricar oxigênio a partir do sufocante ar marciano e lançar o drone Ingenuity, o primeiro “martecóptero” de quatro lâminas a desempenhar uma missão naqueles céus alienígenas.
De acordo com Matt Wallace, o vice-gerente de projeto do Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) da Nasa e um veterano de todas as missões anteriores de rovers em Marte, essas duas últimas tarefas, e a complexidade geral da missão, fazem que o Perseverance seja “o primeiro [rover] que considero precursor de uma missão humana”. Ainda mais importante, o MOXIE, o experimento para produção de oxigênio, poderia vir a fornecer ar respirável e combustível de foguete para futuros astronautas, que também poderiam utilizar “martecópteros” mais avançados para explorar os arredores.
Mas, verdade seja dita, tudo isso é secundário, ou apenas complementar, aquela que é a verdadeira razão de ser do Perseverance: determinar se a vida já existiu em Marte – e se poderá existir no futuro.
A BUSCA DO PERSEVERANCE
“Em essência, este rover é um robô geólogo e um astrobiólogo móvel”, declarou Lori Glaze, chefe da divisão de ciência planetária da Nasa, durante uma apresentação pública na quarta-feira. “Estamos realmente buscando a capacidade de identificar quais rochas podem ter preservado as impressões digitais orgânicas da vida no passado.”
Desde o início da era espacial, o planeta vermelho tem sido o alvo mais valioso para estudos de astrobiologia, devido às semelhancas que apresenta com a Terra e sua proximidade no Sistema Solar. Embora atualmente seja um mundo frio e hostil, há bilhões de anos ele era mais quente e úmido – presumivelmente, um lugar perfeitamente bom para o surgimento dos elementos fundamentais da biologia. Mas, de alguma forma, há muito tempo os caminhos de Marte e da Terra divergiram, e apenas um planeta se mostra repleto de vida.
Se não observarmos qualquer sinal da existência de vida no passado de Marte, isso reforçaria o argumento de que a Terra é realmente um lugar muito especial, pois sugeriria que, apesar das condições iniciais quase idênticas, nenhum animalzinho teria conseguido emergir em nosso mundo irmão. Em contraste, se encontrarmos uma fonte independente de vida em Marte, isso seria uma evidência potente para a noção incompreensível de que o Universo é, em certo sentido, construído para que a biologia possa florescer. E enquanto a maioria dos cientistas suspeita que micróbios fossilizados possam ser os organismos mais avançados que se possa vir a encontrar no Planeta Vermelho, qualquer tipo de vida existente lá – mesmo se unicelular – levaria algumas pessoas a exigir uma quarentena planetária, a “deixar Marte para os marcianos”. Em alguns aspectos, se o planeta for aparentemente estéril, este seria o cenário mais promissor para uma possível exploração humana e até mesmo para nos estabelecermos ali.
O Perseverance, mais do que qualquer outra missão na história, promete nos aproximar mais das respostas para esses mistérios interligados. Entre outros motivos, isso se deve ao local onde ele pousou, a cratera de Jezero, que abriga um dos maiores sistemas antigos de lago e delta do planeta, e está repleta de sedimentos (e, talvez, de microfósseis) transportados pela bacia hidrográfica ao redor.
Além disso, a cratera Jezero está imprensada no espaço e no tempo entre duas ocorrências formativas na história de Marte. Encontra-se dentro de Syrtis Major, um complexo vulcânico que se formou há cerca de 3,8 bilhões de anos, que por sua vez fica adjacente à bacia Isidis Planitia, uma gigantesca cratera de impacto que se formou cerca de cem milhões de anos antes das primeiras erupções de Syrtis. O local “é limitado por esses grandes eventos planetários … vemos sua influência nas rochas ao redor de Jezero”, disse Katy Stack Morgan, cientista assistente do projeto Perseverance no JPL. Em Jezero, disse ela, “temos esta janela para o começo da evolução do Sistema Solar e o período de tempo em que a vida estava surgindo na Terra, e talvez estivesse surgindo em Marte também.”
HERDEIRA DE UMA SEQUÊNCIA DE MISSÕES
Das cerca de 50 espaçonaves que foram enviadas a Marte desde 1960, até agora apenas cinco – todas da Nasa incluindo a Perseverance – tiveram sucesso em se deslocar pela superfície (a sonda Tianwen-1 da China, que se prepara para pousar em maio deste ano o seu próprio rover, deverá ser a sexta). Primeiro, veio um minúsculo desbravador, o Sojourner, que em 1997 mostrou que a mobilidade era possível. Em seguida, foram os rovers gêmeos Spirit e Opportunity, que chegaram em 2004 para “seguir a água” e estabelecer a abundância, naquele planeta, daquele que é o ingrediente essencial para a vida. Aos dois seguiu-se o Curiosity, precursor do Perseverance e quase um clone seu, que chegou ao planeta em 2012 para realizar investigações ainda em andamento sobre sua habitabilidade. Nenhum deles, no entanto, chegou perto de fazer o que muitos especialistas terrestres acreditam ser o passo mais crucial na exploração de Marte: trazer pequenos pedaços intocados do planeta de volta à Terra, onde os pesquisadores podem estudá-los em busca de sinais de biologia usando equipamentos de laboratório que não cabem em nenhum veículo espacial que se possa imaginar.
“Na minha opinião, o retorno da amostra de Marte é o desafio da nossa geração em termos de ciência planetária”, disse Bobby Braun, o diretor de ciência planetária do JPL. “É uma meta ambiciosa, desafiadora e cientificamente convincente que – se trabalharmos juntos ao longo de décadas – está ao nosso alcance.”
Ao contrário de todos os seus predecessores, o Perseverance vai dar o pontapé inicial neste esforço audacioso, uma colaboração entre a Nasa e a Agência Espacial Europeia, denominada de campanha “Mars Sample Return”, ou MSR (em português, campanha de retorno de amostras de Marte).
COMEÇA A CORRIDA INTERPLANETÁRIA DE BASTÃO
O ponto crucial da atuação do Perseverance como parte da MSR acontecerá por meio de uma torre cheia de câmeras, espectroscópios e equipamentos de perfuração no final de seu braço robótico de dois metros de comprimento. Wallace e outros compararam esta estrutura robusta a montar um laboratório de química miniaturizado e uma sala limpa sobre uma britadeira, onde todos os dispositivos operam perto dos limites de tolerância tecnológica para a poeira, radiação e oscilações violentas de temperatura que caracterizam a superfície marciana. Os cientistas da missão usarão a torre para identificar e recuperar material de interesse astrobiológico, enchendo até 43 recipientes semelhantes a tubos de ensaio que serão armazenados em cache para coleta posterior em missões de acompanhamento subsequentes, atualmente em desenvolvimento.
De acordo com Stack Morgan, ela e seus colegas estão tentando identificar várias regiões prioritárias para a coleta de amostras, tais como o fundo e a borda da cratera Jezero, além do enorme delta do local e as margens de sua antiga costa.
Agora que o Perseverance está seguro no chão, o relógio começou a bater. “Precisamos coletar muitas dessas amostras muito rapidamente”, disse Wallace, citando o número de 20 amostras ao longo de um ano marciano como a meta básica da missão. Mas independentemente do total que o Perseverance consiga coletar, todas as amostras devem estar prontas para uma eventual coleta por uma missão composta por dois componentes, um para recuperar as amostras em solo e outro para trazê-las para a Terra, que pode ser lançada no final desta década. Trabalhando juntos, tal como parceiros em uma corrida de revezamento, eles poderiam trazer o bastão – talvez meio quilo de espécimes preciosos – através da linha de chegada em terra firme já em 2031.
“O conhecimento que o Perseverance vai gerar vai ocupar nosso mundo por décadas”, disse Braun. “ Nas escolas hoje de hoje existem futuros cientistas que se beneficiarão com o que irá acontecer, e talvez até outros que nem nasceram … o Perseverance é a primeira etapa da campanha dpara retorno de amostras, mas já nos EUA e em toda a Europa estamos trabalhando nas próximas duas missões. ”
Lee Billings