Pode haver predisposição genética para a COVID-19?
Desde que se iniciou a pandemia de COVID-19, vários meses atrás, que os cientistas têm se mostrado intrigados com as diferentes maneiras como a doença se manifesta. Há desde os casos em que praticamente nenhum sintoma se manifesta até aqueles que envolvem uma síndrome respiratória aguda grave, que pode ser fatal. Mas o que causa tamanha variabilidade? Será que a resposta pode estar em nossos genes?
Há mais de 15 anos que a viroses causadas pelos coronavírus suscitam tais questões. Em pesquisas feitas por ocasião do surto de síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2003, Ralph Baric e seus colegas da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill identificaram um gene que, quando silenciado por uma mutação, tornaram camundongos altamente suscetíveis a SARS-CoV, o coronavírus que causa a doença. Chamado de TICAM 2, esse gene codifica uma proteína que ajuda a ativar uma família de receptores, chamados de receptores do tipo Toll (TLRS), que estão envolvidos na imunidade inata, a primeira linha de defesa contra patógenos.
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Agora, a atenção passou para o SARS-CoV-2, o novo coronavírus que causa COVID-19. E os TLRs mais uma vez atraíram o interesse de pesquisadores, dessa vez para ajudar a explicar o excesso no número de homens que sofrem de infecções severas.
Os homens contabilizam 73% dos casos severos de COVID-19 em unidades de tratamento intensivo na França, de acordo com uma pesquisa internacional publicada em 23 de abril. Diferenças comportamentais e hormonais podem ser parcialmente responsáveis. Mas os genes também podem ser fatores a se levar em conta. Diferentemente dos homens, as mulheres possuem dois cromossomos X e por isso carregam o dobro de cópias do gene TLR7, um detector chave de atividade viral que ajuda a aumentar a imunidade.
A genética de grupos sanguíneos podem oferecer alguma luz sobre o quanto alguém está sujeito a ser infectado pelo vírus. No fim de março, Peng George Wang, da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul na China, e colegas lançaram os resultados de um estudo pré-publicado — ainda sem revisão — que comparou a distribuição de típos sanguíneos entre 2,173 pacientes com COVID-19 em três hospitais, nas cidades chinesas de Wuhan e Shenzhen, com pessoas não infectadas na mesma área. O sangue com tipo A aparenta estar associado com maior risco de contrair o vírus, enquanto o tipo O oferece o máximo de proteção por razões ainda a serem determinadas.
O surto de SARS no passado também oferece lições. Os tipos sanguíneos também carregam dois diferentes tipos de moléculas de sacarídeos (açúcar) na superfície das células vermelhas do sangue. Uma corresponde ao tipo A, a outra corresponde ao tipo B. Cada tipo de molécula é produzida por uma enzima cujo gene existe em duas formas (uma para o tipo A, e a outra para o tipo B). Uma terceira variação do gene codifica uma enzima inativa: tipo O (da palavra alemã: ohne, que significa “sem”). Uma pessoa que possuem os variantes A e B da enzima é do tipo sanguíneo AB.
Cada açúcar, A ou B, pode atuar como um antígeno. Pode ativar a produção de anticorpos que ataquem o antígeno que ela não possui, e é por isso que precisa tomar cuidado com transfusões sanguíneas. No sistema ABO de grupos sanguíneos, o tipo O é o mais rico em anticorpos — possuindo tanto anti-A quanto anti-B — enquanto sangue tipo AB não possui anticorpos para nenhum dos dois.
Em 2008, Jacques Le Pendu da Universidade de Nantes, na França, e seus colegas investigaram um modelo in vitro do SARS-CoV. Os pesquisadores mostraram que a ligação entre a proteína S do vírus a um receptor de célula ACE2 (enzima conversora da angiotensina 2), que é necessário para que ocorra infecções, é inibida pelo anticorpo anti-A, apesar de dados sobre o anticorpo anti-B ainda estão em falta.
Um parente próximo da ACE2 em controle de pressão sanguínea é a enzima conversora da angiotensina 1 (ACE1). A ACE1 gene D, uma das muitas variantes genéticas da enzima, está associada com baixos níveis do gene ACE2. Como resultado, as células contém uma quantidade menor daqueles receptores que tornam possível que a infecção por SARS-CoV aconteça. A frequência da ACE1 D difere de um país para o outro, particularmente na Europa, o que só aumenta a questão sobre o quanto a distribuição geográfica dessa variante possa estar relacionada com a prevalência da COVID-19. Poderia isso afetar a epidemiologia da doença em uma escala global? Marc De Buyzere e seus colegas da Universidade de Ghent na Bélgica acham que é o caso.
Usando dados de 25 países (compreendendo uma área que vai de Portugal até a Estônia, e da Turquia a Finlândia), os pesquisadores mostraram que 38% da variação na prevalência da doença é explicada pela frequência do gene ACE1 D. Uma relação similar apareceu para taxas de letalidade. Os pesquisadores também notaram que o gene ACE1 D é menos presente em dois países asiáticos atingidos severamente pelo SARS-CoV-2.
Um outro componente genético de susceptibilidade ao novo coronavírus pode estar nos genes que codificam os antígenos de leucócitos humanos (HLAs), um conjunto de proteínas que mantém o sistema imunológico humano de atacar o próprio corpo. Essas proteínas compõe o complexo principal de histocompatibilidade (MHC), que marca o que é “próprio” e distingue o que é “impróprio”. Reid Thompson e seus colegas da Universidade de Oregon de Ciência e Tecnologia descobriram uma ligação entre certos genes HLA específicos e a gravidade do caso de COVID-19.
Os portadores de uma variante chamada HLA-B* 46:01 aparentam ser particularmente suscetíveis a SARS-CoV-2, algo que já se mostrou anteriormente estar correto no caso do SARS-CoV. Em contraste, a variante HLA-B* 15:03 pode gerar alguma proteção. De acordo com os pesquisadores, identificar os genes HLA de uma pessoa, algo que se pode fazer rapidamente e sem custos, pode ajudar a prever melhor a gravidade da doença — e mesmo identificar aqueles que se beneficiariam mais de uma vacina.
Diversos projetos estão em andamento para investigar em maior profundidade as variantes genéticas que influenciam a infecção por SARS-CoV-2. Andrea Ganna, da Universidade de Helsinki, lançou a COVID-19 Host Genetic Initiative, que mira mobilizar a comunidade internacional de geneticistas que trabalham nesse tópico. Jean-Laurent Casanova, do Hospital Necker para Crianças Doentes em Paris, e da Universidade Rockefeller, está coordenando um esforço similar para identificar variantes genéticas que promovem o desenvolvimento de formas severas de COVID-19 em pessoas com menos de 50 anos de idade.
Nós podemos não ser todos iguais quando se trata do SARS-CoV-2. Mas identificar o porque essas desigualdades existem podem ajudar a reduzi-las.
Esse artigo apareceu originalmente na Pour la Science e foi reproduzido com permissão.
Loïc Mangin
Publicado em 01/05/2020