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Objeto misterioso confunde a linha que distingue estrelas de nêutrons e buracos negros

Observação de um objeto situado no “intervalo de massa” que separa essas duas classes de superpesados cósmicos pode responder antigas questões ou revelar algo completamente novo

Imagem de uma simulação de dois buracos negros em processo de fusão. Crédito: N. Fischer, S. Ossokine, H. Pfeiffer, A. Buonanno (Instituto Max Planck de Física Gravitacional), Simulando a colaboração eXtreme Spacetimes (SXS)

Por mais de uma década, os astrofísicos se perguntaram por que a natureza parece mostrar uma restrição estranha na forma como ela destrói  as estrelas. Em vida, o tamanho delas varia, de pequenas a gigantes. As pequenas simplesmente queimam até esgotar o seu combustível e depois se apagam e somem, mas com as grandes algo mais curioso acontece. Quando morre uma estrela assim, seu tamanho imenso faz com que suas “entranhas” entrem em colapso tal como uma supernova. O processo causa uma explosão cataclísmica e comprime parte dos seus remanescentes na forma de algum objeto exótico da astrofísica — geralmente uma estrela de nêutrons ou, no caso das mais pesadas, um buraco negro. Ainda assim, parece haver uma divisão entre as classes de peso desses dois tipos de corpos estelares massivos. Mesmo que os astrônomos tenham encontrado estrelas de nêutron pesando cerca de duas massas solares, e buracos negros leves pesando cinco, nunca foram encontrados “cadáveres” de  estrelas mortas que tivessem uma massa intermediária  entre essas duas medidas  — até agora. 

Na  terça-feira passada, o projeto  do Observatório de Ondas Gravitacionais de Interferometria  Laser (LIGO em inglês), anunciou a primeira detecção conclusiva de um remanescente estelar cuja massa  estava entre as massas das estrelas de nêutrons e dos buracos negros. Após meses de cálculos, os pesquisadores do LIGO e do detector de ondas gravitacionais Virgo, na Itália, concluíram que tais ondas, que atravessaram a Terra no último mês de agosto — um evento chamado de GW190814 que foi inicialmente classificado como um buraco negro consumindo uma estrela de nêutron —, na verdade eram provenientes de um buraco negro de 23 massas solares engolindo um objeto misterioso de 2.6 massas solares. Seja o corpo menor uma estrela de nêutron mais pesada ou um buraco negro mais leve — ou realmente algo exótico, como uma estrela feita de partículas distintas daquelas de estrelas comuns — sua existência sugere que as teorias que descreven os destinos mais extremos das estrelas precisam ser atualizadas. 

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“Eu classificaria esse anúncio como o mais empolgante que nós observamos no LIGO desde a descoberta original de um buraco negro binário e, posteriormente, da primeira detecção de uma colisão de estrelas de nêutrons”, diz Duncan Brown, um astrônomo de ondas gravitacionais na Universidade de Syracuse, que não estava envolvido na pesquisa. “Nós estamos fornecendo uma nova parte do entendimento astrofísico do universo”. 

A nova descoberta sugere que o Cosmos pode desfrutar de mais liberdade para dispor suas estrelas do que pensavam os pesquisadores. Quer isso aconteça porque  as estrelas de nêutrons podem ser maiores,  ou porque as supernovas podem forjar buracos negros menores, a detecção feita pelo LIGO diminui o abismo entre essas duas explicações plausíveis. 

“A ideia de uma divisão absoluta, sem nenhum elemento intermediário, eu acredito que esta sendo progressivamente destruída”, diz Philippe Landry, membro do LIGO na Universidade do Estado da Califórnia, em Fullerton. “Isso vai ser um prego no caixão”. 

De uma perspectiva da física fundamental, a linha separando estrelas de nêutron dos buracos negros é fina como uma navalha. Se você lançar uma maçã em uma estrela de nêutron que esteja no limite do que seus nêutrons constituintes podem suportar, ela irá abruptamente colapsar em um buraco negro. A estrela de nêutron mais pesada conhecida pesa 2.14 vezes a massa do nosso Sol. E teóricos nucleares suspeitam que esses objetos podem crescer e ficar mais pesados, com os modelos mais otimistas colocando o máximo de matéria em 2.5 massas solares. Baseado em tais teorias, a colaboração LIGO calculou que as chances de que o parceiro mais leve no GW190814 seja uma estrela de nêutrons é inferior a 3% . Uma estrela de nêutrons mais pesada, diz Landry, seria uma “completa novidade”. 

A maioria dos astrofísicos apostaria que a fusão detectada no verão passado envolveu um buraco negro grande engolindo um outro buraco negro, pequeno e improvável. Mas enquanto a teoria nuclear torna esse cenário mais plausível do que um envolvendo um único buraco negro e uma estrela de nêutron, ele ainda representa um desafio às melhores teorias propostas para explicar como tais sistemas poderiam ser criados. “Basicamente”, diz Landry, “alguma coisa vai ter de mudar”. 

Até onde os astrofísicos sabem, criar  um buraco negro pequeno — e então alimentá-lo até que fique grande — deveria representar um obstáculo insuperável. Uma maneira concebível para que tal parceiro menor pudesse ser criado seria “esmagando” junto duas estrelas de nêutron grandes, um evento que o LIGO testemunhou em 2017. Porém, quais as chances de  que um ambiente tão especial como um centro galáctico caótico, densamente povoado por corpos estelares, junte duas estrelas de nêutrons — e também consiga reunir um buraco negro com massa diferente, junto com seu companheiro muito maior? “Não há nada que proíba isso”, diz Feryal Özel, uma astrofísica da Universidade do Arizona, que não estava envolvido com o LIGO. “Mas é mais de uma ficção.” 

Para muitos, a opção mais simples é que os miniburacos negros se originem diretamente do coração de uma estrela morrendo, tal como acontece como a maioria dos buracos negros. Os aspectos essenciais  da morte de uma estrela  são simples: uma estrela explode uma “casca” gigantesca, e seu núcleo permanece  para dar origem a  um buraco negro ou a uma estrela de nêutrons. Mas prever as consequências exatas de uma explosão, envolvendo os aspectos gravitacional, termodinâmico e de física de partículas  representa algo como uma “prova” cósmica definitiva, que os astrofísicos ainda estão trabalhando para resolver. “Imagine  uma enciclopédia completa  de física”, diz Brown, “provavelmente vamos precisar de quase todos os conceitos de física que ela contém para modelar uma supernova”. 

Uma equipe liderada por Özel analisou grupos de estrelas de nêutrons e buracos negros que se conhecia  em 2010 e concluiu que nenhum provavelmente tinha massa entre 2 a 5 massas solares. Isso fez com que pesquisadores da área de supernovas se animem com a possibilidade de colocar limites mais claros em relação a este processo que ainda compreendem pouco. Uma proposta inicial surgiu, na qual explosões rápidas e violentas expeliram a maioria do material estelar de maneira limpa, deixando o núcleo “pelado” para se contrair na forma de uma estrela de nêutrons clássica, com massa de talvez duas massas solares. Em cataclismas mais gentis, entretanto, alguns detritos não conseguem ser ejetados, e recaem novamente sobre a estrela de nêutrons. Esse material pode (convenientemente) somar no mínimo duas massas solares, produzindo um buraco negro que pesa, no mínimo, até cinco sóis. 

Assim, esse intervalo entre as massas  passou a ser uma ferramenta para teóricos, diz Vicky Kalogera, uma astrofísica na Universidade Northwestern e colaboradora do LIGO. Ela e seus colegas questionaram a si mesmos, “o que eu preciso propor, em relação ao  mecanismo de colapso do núcleo da estrela, para que essa divisão [entre os limites de massa] venha a acontecer?” ela diz. 

A descoberta do LIGO aponta que talvez não seja haja nada com que se preocupar:  uma massa estelar de 2.6 massas solares pode sugerir que não estão envolvidas regras tão rígidas assim. As supernovas podem ser livres para caminhar  pela linha fundamental entre as estrelas de nêutron e os buracos negros, removendo da prova final de astrofísica uma tarefa difícil.  “Eu acredito que isso significa que não existe  uma divisão com base na massa”, diz Brown. 

De qualquer maneira, a divisão entre estrelas de nêutrons e buracos negros pode persistir bem como uma tendência cósmica ao invés de uma regra. Se  olharmos  para o tamanho das estrelas de forma ingênua, diz Özel,  concluiremos que devem existir buracos negros  em todo lugar. O fato de que eles são relativamente escassos sugere para ela que as supernovas provavelmente conspiram contra eles de alguma forma. “Talvez  seja muito difícil produzir esses objetos, mas muito raramente alguma explosão de uma supernova faz com que isso aconteça”, ela diz. Além disso, pesquisadores ainda precisam  entender por que uma divisão de massa parece separar duplas de buracos negros e estrelas de nêutrons que são observados por meio de raios-x, mas não aqueles que são detectados por ondas gravitacionais. 

Respostas concretas só  aparecerão apenas com mais detecções de supostos objetos “impossíveis”. O LIGO consegue diferenciar os pequenos buracos negros das estrelas de nêutrons grandes se os parceiros tiverem massas similares ou se emitirem um flash visível quando se fundem. Entretanto, mesmo se continuarem a ser detectados eventos ambíguos, a mera observação de suas massas revelará muito sobre o que a natureza faz com os remanescentes de suas estrelas. 

“Depois que descobrimos um sistema esquisito,  precisamos encontrar mais deles”, diz Kalogera. 

Charlie Wood

Publicado em 01/06/2020     

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