O movimento anticiência norte-americano se globalizou e está matando milhares

Crédito: Envato elements
O movimento anticiência já se tornou uma força expressiva e altamente letal, que ameaça a segurança global tanto quanto o terrorismo e a proliferação nuclear. Assim como fizemos para lidar com aquelas ameaças, que são mais reconhecidas e estabelecidas, devemos preparar uma contra-ofensiva e construir novas estruturas para combater a visão anticientífica.
O movimento anticiência rejeita visões e métodos científicos convencionais e defende sua substituição por teorias não comprovadas ou deliberadamente enganosas, muitas vezes para obter ganhos políticos nefastos. Seu alvo são os cientistas proeminentes, que busca desacreditar. O potencial destrutivo desta visão se realizou por completo na antiga URSS, sob o governo de Joseph Stalin. Milhões de camponeses russos morreram de desnutrição e fome durante as décadas de 1930 e 1940 porque Stalin abraçou as visões pseudocientíficas de Trofim Lysenko, que ocasionaram verdadeiras catástrofes na colheita de trigo e de outras culturas. Os cientistas soviéticos que não adotaram as teorias de “vernalização” de Lysenko perderam seus cargos ou morreram de fome em gulags, como ocorreu com o geneticista de plantas Nikolai Vavilov.
Agora, mais uma vez , o movimento anticiência está causando mortes em massa nesta pandemia de COVID-19. A partir da primavera de 2020, a Casa Branca de Trump lançou uma campanha coordenada de desinformação que procurou negar a gravidade da epidemia nos Estados Unidos, atribuiu as mortes causadas pela COVID a outras causas, alegou que as internações hospitalares se deveram um crescimento nas cirurgias eletivas e afirmou que, em última análise, a epidemia evaporaria espontaneamente. Também promoveu a hidroxicloroquina como uma cura espetacular, ao mesmo tempo que minimizou a importância do uso das máscaras. Outros regimes autoritários ou populistas no Brasil, México, Nicarágua, Filipinas e Tanzânia adotaram alguns desses elementos, ou todos eles.
Como cientista de vacinas e pai de uma filha adulta com autismo e deficiência intelectual, tenho anos de experiência na luta contra o lobby antivacina, que afirma que as vacinas causam autismo ou outras doenças crônicas. Isso me preparou para identificar rapidamente as afirmações ultrajantes feitas por membros da equipe de Trump na Casa Branca, e para ligar os pontos para rotulá-las como desinformação anticiência. Apesar de ter empregado meus melhores esforços para soar o alarme e denunciar o que estava acontecendo, a desinformação anticiência criou um caos em massa nos estados republicanos. Durante o verão de 2020, a contaminação por COVID-19 acelerou nos estados do Sul, à medida que os governadores suspenderam prematuramente as restrições, e criou-se uma segunda, e desnecessária, onda de casos e de mortes por COVID-19. Então, após um grande protesto de motocicletas na cidade de Sturgis, no estado de Dakota do Sul. uma terceira onda se desenrolou no outono na região do Meio-Oeste americano. Ambas as ondas tiveram como marca registrada milhares de indivíduos que associaram seu senso de identidade e fidelidade política ao direito de desafiar o uso de máscaras e a prática do distanciamento social. Um ponto culminante foi o depoimento, altamente divulgado, de uma enfermeira de UTI que chorou ao relatar as últimas palavras de um de seus pacientes, que insistia que a COVID-19 era uma farsa.
Agora surgiu um novo teste, tanto de desafio quanto de fidelidade ao Partido Republicano, na forma da resistência à vacinação contra a COVID-19. Pelo menos três pesquisas — uma da Fundação Kaiser Family, o nosso estudo publicado na revista Social Science and Medicine, e a pesquisa PBS News Hour / NPR / Marist — apontam para republicanos ou republicanos brancos como os principais grupos resistentes à vacinação na América. Pelo menos um em cada quatro deputados republicanos da Câmara recusará a vacina contra a COVID-19. Mais uma vez, devemos antecipar que muitos desses indivíduos podem perder suas vidas para a COVID-19 nos próximos meses.
Historicamente, a visão anticientífica não era um elemento importante para o Partido Republicano. A Academia Nacional de Ciências foi fundada durante o governo Lincoln; A Nasa, no governo Eisenhower; e o PEPFAR (Plano Presidencial de Emergência para o Alívio da AIDS), o PMI (Iniciativa Presidencial contra a Malária) e o programa NTDs (Doenças Tropicais Negligenciadas) foram lançados no governo George W. Bush. Fui professor e catedrático de microbiologia na George Washington University, com sede em Washington, D.C., durante os anos 2000 e trabalhei em estreita colaboração com membros da Casa Branca de Bush para moldar esses programas.
Eu remonto a adoção da visão anticientífica como a principal plataforma do Partido Republicano a partir do ano de 2015, quando o movimento antivacina girou politicamente para a extrema direita. Tudo começou no sul da Califórnia, quando, após a adoção de várias isenções para a vacinação, eclodiu uma epidemia de sarampo. Os legisladores da Califórnia revogaram essas isenções com o objetivo de proteger a saúde pública, mas isso acendeu um grito de guerra pela “liberdade de saúde”. A liberdade de saúde ganhou força e se intensificou no Texas, onde foi formado um comitê de ação política vinculado ao movimento Tea Party. Os protestos contra as vacinas se tornaram a principal plataforma do Tea Party; em 2020, essa iniciativa se generalizou, na forma do desafio ao uso de máscaras e do distanciamento social. Para acelerar ainda mais essas tendências, surgiram think tanks de direita, como o Instituto Americano de Pesquisa Econômica, que patrocinou a Declaração de Great Barrington, e a Instituição Hoover, da Universidade de Stanford, onde atuava Scott Atlas, o médico que se tornou conselheiro sênior na Força tarefa para o coronavírus da Casa Branca de Trump.
A agenda anticientífica do Partido Republicano se expandiu agora além de nossas fronteiras nacionais. No verão de 2020, a linguagem da direita política anticiência na América estava na frente e no centro das manifestações antimáscara e antivacinas em Berlim, Londres e Paris. No comício em Berlim, meios de comunicação relataram ligações com a conspiração QAnon e com grupos extremistas. Somando-se a essa mistura tóxica, estão surgindo relatórios da inteligência dos EUA e do Reino Unido de que o governo russo, liderado por Putin, está trabalhando para desestabilizar as democracias por meio de elaborados programas de desinformação antivacina e anticiência COVID-19. A recusa pública das vacinas COVID-19 agora se estende à Índia, Brasil, África do Sul e muitos países de baixa e média renda.
Estamos nos aproximando de três milhões de mortes por causa da pandemia COVID-19, e está cada vez mais claro que o SARS-CoV2, sozinho, não é o responsável. A facilitação da disseminação da COVID-19 é um movimento anticiência expandido e global, que começou modestamente sob a bandeira da liberdade de saúde adotada pelo movimento Tea Party do Partido Republicano do Texas. Até agora, o resultado foi a ocorrência de milhares de mortes, e isso pode ser apenas o começo, pois agora estamos vendo o impacto na recusa à vacinação nos EUA, na Europa e nos países de baixa e média renda da África, Ásia e América Latina.
Conter a anticiência exigirá trabalho e uma abordagem interdisciplinar. Para encontrarmos soluções inovadoras e abrangentes, podemos olhar para forças-tarefa interagências no governo dos EUA, ou para as agências das Nações Unidas. Dado o papel desempenhado me tudo isso por atores estatais, como a Rússia, e por organizações antivacinas que lucram pela Internet, devemos antecipar que qualquer contra-ofensiva deve ser complexa e multifacetada. As apostas são altas devido ao alto número de mortes que já está aumentando com o golpe duplicado formado pelo SARS CoV2 e pelo movimento anticiência. Devemos estar preparados para implementar uma infraestrutura sofisticada para neutralizar o problema, semelhante ao que já fizemos para ameaças globais mais estabelecidas. A anticiência, agora, é um grande e formidável problema de segurança.
Peter J. Hotez
Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a opinião de Scientific American Brasil
Publicado em 29/03/2021