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Novo método automatiza a “dissecação virtual” de múmias egípcias de animais

Para estudar múmias egípcias e outros achados sem destruí-los, pesquisadores geralmente faziam microtomografias que precisavam ser “dissecadas” manualmente, ao longo de muitas horas. Até agora.
Múmias egípcias de animais.

Múmias egípcias sendo “dissecadas” virtualmente. Crédito: Tanti et al., 2021, PLOS ONE, CC-BY 4.0

Cientistas desenvolveram um novo sistema computacional, batizado de Automated SEgmentation of Microtomography Imaging (ASEMI), que permite “dissecar” os modelos 3D virtuais de múmias e outros artefatos arqueológicos de forma automática. O método foi testado na análise das imagens de quatro múmias egípcias de animais e sua precisão ficou entre 94 e 98% quando comparado com o laborioso e demorado método de separar as estruturas virtuais manualmente. 

O estudo foi feito por cientistas da Universidade de Malta em parceria com a Instalação Europeia de Luz Síncrotron (França, ESRF na sigla em inglês) e publicado no periódico PLOS.

Algumas múmias, artefatos e outros achados arqueológicos não são feitos para serem abertos 2.000 anos depois sem serem destruídos. Como esses achados são extremamente raros, na maioria das vezes os pesquisadores não podem se dar ao luxo de cortar as bandagens de uma múmia ou serrar um vasilhame só para ver o que tem dentro. 

Por isso, muitos estudos desses materiais são feitos através de um tipo de microtomografia, uma versão mais precisa e especializada dos exames que fazemos no hospital. Assim, através deste método, os cientistas lançam raios-x através dos artefatos, analisando as estruturas internas de forma não-destrutiva a partir do contraste entre materiais que absorvem mais e menos dessa radiação. 

Múmias egípcias de diferentes animais.

A: Múmia de cachorro; B: ave de rapina; C: íbis enrolado em tecido; D: íbis em jarro. Crédito: imagens do estudo.

Dificuldades da microtomografia

O único problema desses “exames de autópsia” é que os resultados não vêm prontos como estamos acostumados no hospital. A complexidade das formas de algumas múmias, a variedade de materiais nos vasilhames e o fato de não sabermos o que está dentro torna essa análise muito mais complexa.

Dessa forma, o material bruto obtido pelas microtomografias é muito confuso para ser analisado diretamente. É preciso que um cientista ou técnico especializado nessa tecnologia interprete as imagens e segmente cada estrutura em um nível. Deve-se diferenciar ossos, dentes, jóias, tecido macio (“carne”), bandagens, etc. Somente quando cada um desses materiais estiver em uma camada própria, é possível realizar estudos com o artefato.

Mas este processo é extremamente lento e laborioso. Como deve ser feito manualmente (ou semi-manualmente), ele acaba gastando um tempo precioso para os cientistas, que poderiam estar trabalhando em outras tarefas. Além disso, a velocidade com que se produz imagens de microtomografias nos últimos anos em muito excede a nossa capacidade de segmentá-las. Um exemplo é a ESRF, que analisa órgãos humanos e pode gerar scans com até 2 terabytes cada. 

Dificuldades de automatização

Automatizar esse processo não é uma ideia nova. Em tomografias de estruturas humanas, softwares com inteligência artificial de deep learning já assistem nesse processo. 

Porém, na arqueologia é um pouco diferente. Esses softwares não estão acostumados a trabalhar com imagens feitas por equipamentos desse campo, que trabalham com resoluções e contrastes diferentes. Além disso, os scans são mais complexos e têm uma variedade interna muito maior que as estruturas humanas já conhecidas.

Outro fator muito significativo é que o deep learning desses programas precisa ser treinado com imagens anteriores para aprender a diferenciar entre as estruturas. E, diferente da medicina, na arqueologia a quantidade de informação necessária para isso simplesmente não está disponível atualmente. “Isso impõe um desafio significativo para a aplicação de técnicas de deep learning, que geralmente requer uma quantidade considerável de dados para treinamento,” aponta o artigo.

Para contornar essas dificuldades os pesquisadores desenvolveram um outro software, substituindo o deep learning por um algoritmo de aprendizado de máquina clássico. Este requer menos dados para ser treinado, além de ser tecnicamente menos complexo, reduzindo a quantidade de dados para treino e o tempo de computação para análise dos artefatos. 

Múmia em jarro.

Passo a passo da dissecação virtual da múmia de íbis inserido em jarro. Crédito: imagens do estudo

“Dissecando” múmias egípcias

Para testar o programa, eles utilizaram quatro múmias egípcias de animais das coleções do Museu de História Natural de Grenoble e do Museu de Grenoble, ambos na França. Não se sabe a origem exata das múmias, mas elas foram datadas entre o 300 a.C. e 400 d.C. 

As múmias foram escaneadas por microtomografia com os equipamentos da ESRF e, em seguida, suas imagens foram segmentadas manualmente. Dessa forma, o material resultante foi utilizado para treinar ou testar o software desenvolvido. Os pesquisadores obtiveram uma alta taxa de precisão: entre 94 e 98% na comparação com a segmentação manual. Em relação ao método concorrente, que utiliza deep learning, a precisão ficou entre 97 e 99%. Os dados são muito promissores, considerando a menor complexidade do programa e a diminuição na necessidade de treino.

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Ainda assim, a segmentação não foi perfeita. “Na múmia do cachorro, por exemplo, o maior erro de classificação foi que 26% das imagens de ‘dentes’ são consideradas como ‘osso’. Isso não é nenhum pouco surpreendente, dada a similaridade entre esses materiais e a presença baixa de ‘dentes’ nas amostras,” explica o artigo. De fato, quanto mais informações de treino o software recebe, melhor será sua classificação. 

Os pesquisadores esperam que, no futuro, programas como esse sejam aprimorados e consigam realizar segmentações tão precisas quanto o trabalho manual. As aplicações da microtomografia são muitas: industrial, biomedicina, imageamento de tumores, geologia, nanotecnologia, etc. Com avanços como esse, os cientistas poderiam ser dispensados de tarefas tediosas para focar onde sua presença é realmente necessária.

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Publicado em 16/12/2021.

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