Novas variantes mais contagiosas do coronavírus podem prejudicar efeitos das vacinas?
Enquanto crescem as preocupações com as variantes do novo coronavírus que se mostram capazes de se espalhar mais rapidamente, por todo planeta os laboratórios estão correndo para desvendar sua biologia. Os cientistas querem entender quais os fatores que fazem com que as variantes do SARS-CoV-2, identificadas no Reino Unido e na África do Sul, pareçam se disseminar mais rapidamente, e também querem avaliar se essas cepas são capazes de reduzir o efeito das vacinas, ou até de superar as defesas naturais do sistema imune, e levar a uma avalanche de novas reinfecções.
“Muitos de nós estão na batalha para entender as novas variantes, e a pergunta mais importante é: qual o significado que isso terá para a eficácia das vacinas que hoje estão sendo administradas?”, diz Jeremy Luban, virologista na Escola de Medicina da Universidade de Massachusetts, em Worcester, EUA.
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Os primeiros resultados obtidos pelos laboratórios começaram a ser publicados no começo do mês. E espera-se que surjam muito mais informações nos próximos dias. Os pesquisadores estão avançando nos testes das variantes virais e das suas mutações usando células infectadas com SARS-CoV-2 e modelos animais, submetendo-os aos anticorpos produzidos por meio de vacinas ou por infecções naturais. Um artigo em pré-publicação, datado de 8 de janeiro, descobriu que uma mutação que é encontrada nas novas cepas dos vírus encontradas na África e na Inglaterra não altera a atividade de anticorpos produzidos por pessoas que receberam uma vacina desenvolvida pela Pfizer e pela BioNtech. Espera-se, em breve, dados sobre outras mutações e vacinas.
“Até semana que vem teremos mais informações”, diz Vineet Menachery, virologista da Universidade do Texas em Galveston, cuja equipe está se preparando para estudar as variantes.
A biologia por trás
Pesquisadores identificaram essas duas variantes do novocoronavírus no fim de novembro e no começo de dezembro de 2020 através do sequenciamento genético. O Reino Unido realizou um grande empreendimento para realizar o sequenciamento genético da COVID-19 e constatou que uma variante do vírus, agora conhecida como B.1.1.7, têm causado um número crescente de casos no Sudeste da Inglaterra e em Londres; a variante agora se espalhou para o resto do Reino Unido, e já foi detectada também em dezenas de países ao redor do mundo.
E uma equipe liderada pelo biofarmacêutico Tulio de Oliveira, da Universidade de KwaZulu-Natal em Durban, na África do Sul, vinculou um surto na Província do Cabo Oriental, no Leste do país, a uma variante do coronavírus chamada 501Y.V2. As variantes do Reino Unido e da África do Sul apareceram de forma independente, mas ambas carregam um grupo de mutações — algumas delas similares — na proteína spike do coronavírus. O vírus usa essa proteína para identificar e infectar as células hospedeiras, e ela é o principal alvo atacado pelas defesas do nosso sistema imunológico.
Epidemiologistas que estudam o crescimento da variante B.1.1.7. no Reino Unido estimaram que ela seja aproximadamente 50% mais transmissível do que as cepas atualmente em circulação, uma informação que contribuiu para a decisão do governo britânico de entrar em uma terceira quarentena a partir do dia 5 de janeiro. “A epidemiologia realmente nos guiou nessa escolha”, diz Wendy Barclay, virologista no Imperial College London e membro de um grupo que aconselha o governo do Reino Unido na resposta à B.1.1.7.
Porém, Barclay acrescenta que é importante que os cientistas compreendam a biologia das novas cepas. “Entender quais são as propriedades do vírus que o tornam mais transmissível nos permite tomar decisões políticas mais embasadas.”
Um desafio é distinguir os efeitos das mutações que diferenciam as linhagens encontradas no Reino Unido e na África do Sul de outras cepas do vírus. A variante B.1.1.7. carrega 8 mudanças que afetam a proteína spike, e diversas outras mutações em outros genes; amostras da variante 501Y.V2 sul-africana possuem até 9 mudanças ligadas à proteína spike. Entender quais são responsáveis por causar o contágio rápido e outras propriedades dessas cepas é um “desafio enorme”, diz Luban. “Eu não acredito que tudo isso se deva a uma única mutação.”
O foco está principalmente em uma mudança na proteína spike que é compartilhada por ambas as linhagens, chamada N501Y. Essa mutação altera uma parte da spike que é chamada de domínio de ligação receptor, que é capaz de se prender a uma proteína humana de forma a permitir que o vírus infecte a célula. Uma hipótese apontada em estudos anteriores é que a mudança no N501Y permite que o vírus se ligue às células com mais força, facilitando a infecção, diz Barclay.
A mutação N501Y é uma entre diversas que a equipe de Menachery está se preparando para testar em hamsters, um animal que serve como modelo para estudar a transmissão do SARS-CoV-2. Ele participou de grupo de estudiosos que relatou, no ano passado, que uma mutação diferente na proteína spike permitiu que os vírus crescessem mais nas vias aéreas de hamsters, em comparação com cepas que não possuíam a mutação. “É isso que eu imagino que essas mutações façam”, ele diz. “Se esse for o caso, altera sua transmissibilidade.” Um relatório publicado no fim de dezembro apoia essa hipótese: o estudo encontrou mais material genético de SARS-CoV-2 em cotonetes de pessoas infectadas com a variante B.1.1.7, em comparação com indivíduos infectados por vírus que não possuem a mutação N501Y.
Testes de anticorpos
A capacidade das novas cepas de infectar numa velocidade maior levou a grandes esforços para contê-las, na forma de quarentenas, bloqueios de fronteiras e vigilância acirrada. Para aumentar a urgência, há o temor de que as novas cepas possam enfraquecer respostas imunológicas geradas pelas vacinas, ou mesmo a resposta imunológica natural remanescente, produzida pelo organismo para combater uma contaminação anterior pelo novo coronavírus. Jason McLellan, biólogo estrutural da Universidade de Texas-Austin (UTMB), que estuda proteínas spike do coronavírus, diz que ambas as novas cepas possuem mutações em regiões da proteína spike que podem ser reconhecidas por anticorpos poderosos, capazes de “neutralizar” o vírus. Isso aumenta a possibilidade de que os anticorpos que atacam essas regiões do DNA do vírus possam ser afetados pelas mutações.
O resultado é que tanto pesquisadores da academia e dos governos como empresas que desenvolvem vacinas estão trabalhando dia e noite para resolver a questão. “É um ritmo intenso”, diz Pei-Yong Shi, virologista da UTMB que está colaborando com a Pfizer para analisar amostras de sangue de pessoas que participaram de seu teste bem-sucedido de vacinas. No texto colocado para pré-publicação em 8 de janeiro, a equipe encontrou poucas diferenças na potência dos anticorpos que foram gerados pelos 20 participantes do teste de vacinas contra as cepas que possuem a mutação N501Y, em comparação com cepas que não possuíam tal mudança. A equipe agora examina os efeitos de outras mutações nas variantes.
Em um experimento relacionado, uma equipe liderada por seu colega Menachery também constatou que não houve nenhum efeito expressivo causado pela mutação 501Y sobre a atividade de anticorpos neutralizantes no soro convalescente — a porção do sangue que contém anticorpos que é retirada de pessoas que se recuperaram da infecção por COVID. Isso sugere que é improvável que a mutação 501Y afete o sistema imune, acrescenta Menachery, que postou os dados sobre o estudo no Twitter no dia 22 de dezembro.
Mas outras mutações podem gerar esse efeito. Entre elas, a mais relevante é outra mutação ligada à capacidade do vírus se vincular à célula hospedeira, que a equipe de Oliveira identificou na variante 501Y.V2, que foi chamada E484K. Sua equipe está trabalhando com o virologista Alex Sigal, no Instituto de Pesquisa de Saúde da África em Durban, para testar a variante contra o soro convalescente e soro de pessoas que foram vacinadas em ensaios. Os primeiros resultados desse estudo devem ser publicados em alguns dias, diz Oliveira.
Fuga imunológica
Estão surgindo evidências de que a mutação E484K poderia permitir que o vírus consiga fugir de algumas respostas imunológicas das pessoas. Em um artigo colocado em pré-publicação no dia 28 de dezembro, uma equipe liderada pelo imunologista Rino Rappuoli, na Fundação Toscana de Ciências da Vida em Siena, na Itália, cultivou o SARS-CoV-2 na presença de níveis baixos do soro convalescente de uma pessoa. O objetivo era selecionar mutações virais que fossem capazes de escapar do variado conjunto de anticorpos o organismo gera como resposta à infecção pelo vírus. “Não esperávamos que o experimento necessariamente tivesse resultados”, diz McLellan, coautor do artigo. Mas após 90 dias, o vírus apresentou três mutações que o tornaram blindado contra o soro colhido na pessoa, incluindo a mutação E484K, presente na variante da África do Sul, e outras mudanças encontradas na variante do Reino Unido. “Isso foi surpreendente”, diz McLellan, porque sugere que toda a resposta de anticorpos de uma pessoa contra o SARS-CoV-2 tinha como algo específico apenas um pequeno trecho da proteína spike.
A cepa que evoluiu no experimento do laboratório se provou menos resistente quando exposta ao convalescente coletado em outros indivíduos. Mas esses experimentos sugerem que as mutações carregadas por ambas as variantes poderiam afetar a forma como os anticorpos gerados por vacinas e por episódios anteriores de contaminação reconhecem o vírus, diz McLellan.
A empresa de biotecnologia Moderna, que fica em Cambridge, Massachusetts, nos EUA, que desenvolveu uma vacina baseada em RNA, disse que espera que suas doses funcionem contra a variante do Reino Unido, e que os testes estão acontecendo.
Uma questão latente é se tais alterações vão mudar a efetividade das vacinas fora do laboratório e dos experimentos, diz Jesse Bloom, bióloga evolucionária viral no Centro de Pesquisa para o Câncer Fred Hutchinson, em Seattle, Washington. Em um artigo em pré-publicação postado dia 4 de janeiro, sua equipe também relatou que a E484K e diversas outras mutações podem driblar o reconhecimento dos anticorpos no soro convalescente de pessoas, em diferentes graus.
Mas Bloom e outros cientistas estão esperançosos de que as mutações nas variantes não enfraqueçam substancialmente a performance de vacinas. As doses tendem a lançar níveis altos de anticorpos neutralizadores. Por isso, uma pequena queda em sua potência diante das novas cepas pode não ser algo importante. E outros elementos da resposta imunológica acionada por vacinas, como células-T, podem não ser afetados. “Se tivesse que falar agora, eu diria que as vacinas permanecerão efetivas para as coisas que realmente importam: impedir que as pessoas fiquem doentes a ponto de morrer”, diz Luban.
Ewen Callaway
Nature magazine
Publicado em 26/01/2021