Novas variantes de vírus da COVID-19 podem surgir em pessoas com sistema imunológico comprometido
Na metade do ano passado, quando a segunda onda de casos de COVID-19 estava varrendo o Reino Unido, um homem de 70 anos foi internado no hospital de sua cidade, onde testou positivo para SARS-CoV-2. Ele foi mandado para casa mas, incapaz de se livrar do vírus, um mês depois deu entrada no hospital da Universidade de Cambridge. Como muitas pessoas que desenvolvem uma forma grave de COVID-19, o homem era imunocomprometido. Ele tinha linfoma e havia recebido tratamento de quimioterapia anteriormente.
Os médicos lhe ministraram remdesivir, um medicamento antiviral usado para tratar COVID-19, mas ele apresentou pouca melhora. Dois meses após o início da doença, com o agravamento do paciente, sua equipe médica optou por tratá-lo com plasma convalescente, uma terapia que é derivada do sangue de pacientes que se recuperaram do COVID-19, o qual contém anticorpos para combater o vírus.
Infelizmente, ele sucumbiu ao vírus 102 dias após o teste positivo. Mas o que os médicos aprenderam com ele e com pacientes semelhantes “transformou nossa compreensão sobre o que acontece nesta doença”, disse Ravindra Gupta, membro da equipe médica da Universidade de Cambridge e autor sênior de um relato sobre o caso do homem publicado em 5 de fevereiro na Nature. A análise de amostras do paciente mostrou que o vírus evoluiu rapidamente após a terapia de plasma, desenvolvendo mutações que alteraram o modo como ele conseguia infectar células e resistir a anticorpos. As condições revelaram-se propícias para a evolução viral. “Este é um guia que mostra como surgem as variantes [do vírus]”, diz Gupta.
O tratamento com plasma não livrou o homem do vírus e, na verdade, teve pouco impacto na quantidade de vírus detectada. Mas o plasma teve um efeito notável na composição genética da população viral que o paciente abrigava. Aparentemente em resposta aos anticorpos contidos no plasma, o vírus produziu “mutações de escape”, mudanças no código genético que o ajudaram a evitar a detecção pelos anticorpos. Tais mutações podem tornar o vírus mais contagioso ou as vacinas menos eficazes. Elas estão aparecendo em novas variantes do SARS-CoV-2 em todo o mundo, dando mais gás a pandemia enquanto, em paralelo, as pessoas estão sendo vacinadas.
Ao longo dos vários meses que durou o tratamento do paciente, os médicos coletaram amostras do vírus e determinaram suas sequências genéticas. A infecção começou como uma população geneticamente singular, mas sofreu mudanças sutis após o tratamento com o antiviral remdesivir. “E então as coisas realmente mudaram quando tentamos plasma convalescente”, diz Gupta.
Mudanças aleatórias em qualquer sequência genética viral são algo normal durante o curso de uma infecção, mas no paciente de Gupta um padrão marcante emergiu. Após as infusões de plasma, apareceram vírus contendo múltiplas novas mutações e rapidamente eles se tornaram dominantes, mas não por muito tempo. Duas semanas depois, quando se esperava que os níveis de anticorpos tivessem diminuído, a população de vírus mutantes desapareceu. Mas então o paciente recebeu um tratamento final de plasma. Surpreendentemente, a cepa mutante voltou com tudo. A equipe de Gupta conjeturou que as mudanças genéticas parecem ter ocorrido em resposta ao tratamento com plasma. Esse fenômeno, denominado pressão seletiva, pode ter ocorrido quando os vírus com mutações resistentes aos anticorpos sobreviveram.
A cepa de vírus pós-plasma carregava duas mutações específicas: uma, chamada D796H, raramente havia sido documentada antes. A outra, que resulta na deleção de dois aminoácidos, denominada ∆H69 / ∆V70, “ganhou notoriedade, porque é uma das mutações definidoras da linhagem B.1.1.7”, diz Gupta, referindo-se a uma cepa originalmente encontrada no Reino Unido, que se mostrou mais transmissível. (Gupta acredita que a cepa B.1.1.7 provavelmente surgiu de um paciente imunocomprometido, mas os dados mostram que ela não se originou neste paciente específico.)
Para explorar o impacto dessas duas mutações, os pesquisadores as introduziram – tanto juntas quanto em separado – numa cultura laboratorial de SARS-CoV-2. Os vírus que possuíam a mutação D796H ou as duas se saíram melhor ao evitar os anticorpos, sugerindo que os anticorpos exerceram “pressão” para gerar mutações. Sozinha, a mutação D796H piorou a capacidade do vírus para infectar células. Porém, sozinha, a mutação para a deleção de ∆H69 / ∆V70 tornou o vírus duas vezes mais eficiente para infectar células, uma marca registrada da variante B.1.1.7. Já o vírus que possuía ambas as mutações mostrou uma capacidade de infectar células semelhante à da população original, que não possuía as mutações, sugerindo que as duas mutações se cancelaram no que tange à capacidade infecciosa. A análise mostrou que a mutação D796H surgiu primeiro, e Gupta postula que a deleção pode ter surgido em resposta. “É como se o vírus estivesse tentando se corrigir”, diz ele, compensando o déficit de infectividade.
A rápida evolução do vírus também foi documentada em outros pacientes, incluindo um homem de Boston hospitalizado no Brigham and Women’s Hospital, cujo caso foi relatado em 3 de dezembro no New England Journal of Medicine. Jonathan Li, virologista que foi o autor desse estudo de caso, diz que seu grupo também encontrou várias mutações, mas eles não entenderam as implicações até mais tarde. Mas, depois que essas mesmas mutações foram descritas na B.1.1.7 e outras variantes, e que se constatou que elas tinham a capacidade de mudar o comportamento do vírus, “foi então que percebemos [que] era um prenúncio do que estava por vir.”
É impossível saber quantas pessoas estão carregando um vírus em evolução ativa. Talvez mais preocupante, outro caso relatado em 4 de novembro na Cell demonstrou essa evolução viral ocorrendo ao longo de vários meses em um paciente assintomático. “Precisamos descobrir exatamente como e quando isso está acontecendo, em quem e com que frequência, e o que fazer a respeito”, diz Gupta. Pacientes imunocomprometidos não são, de forma alguma, a única fonte de novas variantes mutantes, diz Li. “Os vírus também sofrem mutação em pessoas imunocompetentes, especialmente num cenário de transmissão sem controle e de replicação [viral].
Enquanto isso, Li diz, as descobertas têm implicações imediatas no mundo real. “Precisamos prestar muito mais atenção aos pacientes imunocomprometidos e ter cuidado para assegurar que eles consigam eliminar o vírus. Precisamos cuidar deles de forma intensiva. ” As regras em torno do isolamento também podem precisar levar em conta esses pacientes. “Os critérios do CDC dizem que o paciente pode deixar o isolamento 10 dias após o início dos sintomas, e isso provavelmente serve para a grande maioria das pessoas”, mas pessoas imunocomprometidas podem precisar se isolar por mais tempo, diz Li.
O ponto principal, concordam os virologistas, é que, na esteira dessas novas variantes, a vacinação generalizada se tornou ainda mais urgente. Até então, você sabe o que fazer: mascarar e manter distância física.
Stephani Sutherland
Publicado em 24/02/2021