Nos EUA, distribuição de vacinas contra COVID-19 já preocupa autoridades de saúde
Até agora, duas empresas farmacêuticas já reportaram sucessos em ensaios de fase III de suas vacinas para a COVID-19. No dia 18 de novembro, a Pfizer e seu parceiro BioNTech disseram que sua vacina apresentou um índice de 95% de eficácia na proteção contra a doença, com base nos resultados completos do ensaio. Dois dias antes, a Moderna havia relatado uma eficácia de 94,5% a partir de dados temporários.
A Pfizer e a Moderna utilizaram a mesma tecnologia de engenharia genética para produzir a vacina, que envolve o uso de moléculas mensageiras de RNA. Imaginado-se que a Agência de Alimentos e Medicamentos autorize o “uso emergencial”, cada empresa terá de acelerar tremendamente a produção e a distribuição. A Pfizer espera produzir até 50 milhões de doses em todo o mundo em 2020, e 1,3 bilhões em 2021. Uma pessoa que receber qualquer uma das duas vacinas irá precisar de duas doses, administradas com três ou quatro semanas de diferença.
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Entregar pequenos recipientes de vidro contendo vacinas para hospitais e farmácias passa por várias etapas. A vacina da Moderna deve ser enviada à temperatura de -20° C, e devem ser armazenadas a esta temperatura durante seis meses. Uma vez armazenada em um refrigerador com temperaturas entre 2° C e 8° C, poderá ser usada em até 30 dias. A vacina da Pfizer deve ser armazenada a -70° C, um desafio muito maior. Uma vez transferida para um refrigerador, deve ser administrada em até cinco dias.
Nos Estados Unidos, a Moderna irá produzir sua vacina em New Hampshire, Pensilvânia e Indiana. Ela será enviada através do centro de distribuição da McKesson Corporation no Texas, a sede da iniciativa de vacinação Operation Warp Speed, do governo federal. A Moderna também planeja produzir seu imunizante na Suíça e na Espanha. A Pfizer irá produzir sua vacina no Michigan. Ela não vai recorrer à Operation Warp Speed. Ao invés, irá enviá-la em grandes caixas térmicas, empilhadas juntos com gelo seco, através de empresas como UPS e FedEx. A Pfizer também possui uma unidade de manufatura na Bélgica. No dia 16 de novembro, a empresa lançou um programa piloto para testar seu plano de entrega para quatro estados: Rhode Island, Tennessee, Texas e Novo México.
O sistema que é usado na distribuição de produtos a baixa temperaturas, empregado em itens como carne e substâncias químicas, é conhecido como “cadeia gelada”. Como usar essa rede adequadamente para enviar um número imenso de doses de vacinas? Como manter a vacina em segurança? Como tudo isso poderá afetar o cronograma de vacinação e a seleção das pessoas que a receberão? Scientific American conversou com Julie Swann, professor e chefe do departamento de engenharia industrial e de sistemas na Universidade do Estado da Carolina do Norte, para entender os detalhes. Swann é especialista em cadeias de distribuição para a área de cuidados em saúde, e trabalhou para o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos durante a resposta emergencial à pandemia de gripe suína de H1N1 em 2009.
A vacina da Moderna precisa ser transportada a uma temperatura de -20° C. Isso é comum para produtos congelados? E a temperatura de -70° C da Pfizer será extrema?
Existem diferentes cadeias “geladas”. A mais fria delas, a “ultracongelada”, é a que fica em -70° C. Existe a corrente “gelada” de -20° C, o que é mais parecido com um freezer comum. E existe a corrente “refrigerada”: muitas vacinas, como as vacinas para gripe, são refrigeradas entre dois e oito graus Celsius. Somente duas tiveram de ser congeladas em -20° C, como as vacinas para catapora e para cobreiro. A vacina para Ebola realmente tinha uma cadeia de fornecimento “ultracongelada”. Algumas vacinas para animais, como vacinas para galinhas, são mantidas nessa temperatura também.
Quais tipos de instalação podem suportar -70° C ?
Não muitas. Grandes universidades certamente possuem tais armazéns em seus laboratórios de pesquisa, e alguns hospitais grandes também, mas o escritório comum de médicos e farmácias não. Os centros de distribuição nas farmácias podem possuir esse tipo de armazém, com freezers sub-80 [capazes de refrigerar a temperaturas até -86° C].Então seria possível usá-los para enviar a vacina de lá para pontos de vacinação, nos quais já haverá um planejamento antecipado de quem receberá a vacina.
As vacinas não tem que ficar congeladas até o momento da inoculação.
O CDC possui um guia para os estados, disponível publicamente, que guia o que se pode fazer com a vacina do tipo A ou com a vacina do tipo B. Ele explica que, uma vez que uma instalação recebe um recipiente térmico [como os da Pfizer], é preciso substituir o gelo seco em 24 horas, e continuar a cada cinco dias. E só se pode abrir a caixa uma ou duas vezes por dia. Após o 15º dia depois da produção das doses, elas tem que ser transferidas para temperaturas refrigeradas e utilizadas dentro de cinco dias. Então, ainda há tempo para vacinar mais pessoas.
Os recipientes térmicos da Pfizer armazenam 975 doses. Caminhões irão levar os recipientes para aviões que vão voar em todas as direções. Cerca de metade dos produtos médicos são enviados em vôos comerciais e a quantidade desses vôos diminuiu muito. Isso será um problema?
Eu não vejo isso como um desafio porque as empresas de entrega dos Estados Unidos precisam fazer dinheiro agora, então vão realizar vôos extras, caso seja necessário, para conseguirem mandar as 50 milhões de doses a seus destinos. Podemos imaginar um sistema de distribuição tipo consolidação e redespacho, diretamente para centros por todo o país. Eles querem cortar os dois dias do tempo de espera: A vacina da Moderna primeiro irá para o centro de distribuição McKesson e, de lá, irá para os fornecedores; isso provavelmente acrescenta uns dois dias. Ao redor do mundo, entretanto, o desafio representado pela vacina da Pfizer é bem significativo. Um estudo estimou que apenas 25 ou 30 países possuem a infraestrutura necessária.
Cada dose da Pfizer irá, na verdade, fornecer cinco doses. Como isso é administrado?
O local que realiza a imunização acrescenta um diluente, criando cinco doses. Após isso, a solução estará pronta para ser usada durante seis horas. A clínica precisa estimar quantos funcionários da área de saúde ou clientes serão vacinados, e começar o processo de diluição durante o dia.
Parece que os pontos de vacinação precisam de muitos recipientes para que uma vacina não seja desperdiçada.
O que eu entendo é que cada bandeja da Pfizer possui 195 doses, cada uma com cinco doses, cerca de 1000 doses no total. E uma caixa pode guardar até cinco bandejas. Se, no começo, se priorizar a vacinação somente dos trabalhadores da linha de frente que estão lidando com os pacientes com COVID-19, é bom reunir pessoas em um local em número suficiente para que cada bandeja seja esvaziada em cinco dias. Os estados também poderiam comprar freezers que comportem essas doses. O Estado de Nova York planeja organizar diversos centros regionais de distribuição. Se fizerem isso, então provavelmente haverá freezers em cada local. Eu não sei se o plano deles irá mudar agora que a Moderna forneceu novas informações.
Eu penso que a maioria dos estados não terão os recursos para organizar os centros regionais de distribuição. O que eu faria, se fosse eles, seria procurar por grandes hospitais que possuem esses freezers e utilizá-los como pontos de distribuição. Eu certamente faria parcerias com as farmácias regionais. E eu olharia para modelos onde se leva parte das doses para outros locais: envia-se a vacina ao seu destino, depois usa-se uma uma van com refrigeração que pode guardar doses por cinco dias. E pode-se pedir que as pessoas se desloquem até outros locais para serem vacinadas. Eu acredito que todos esses passos vão acontecer. Claro, existem questões sobre igualdade, pelo menos no começo, quando a vacinação vai se basear apenas na vacina da Pfizer.
E quanto a perdas? Empresas farmacêuticas relatam que 5% a 20% de outras vacinas estragam durante a distribuição.
Isso será um fator. Há uma maneira de monitorar o recipiente térmico com uma sonda de temperatura. No mundo ideal, seria possível monitorar cada dose individualmente, mas eu não sei se a atual tecnologia permitiria isso. Podemos ver como foi feita a distribuição da vacina para o Ebola na África; foi uma cadeia “gelada” especializada.
E sobre o controle de qualidade da produção?
Na produção e no envio de vacinas comuns, sua potência e sua estabilidade são checadas. Certamente, a Pfizer e a Moderna estão fazendo isso.
Tudo isso é complicado pelo fato de que cada pessoa tem que receber duas injeções, com três ou quatro semanas de diferença. Isso derruba à metade o número de pessoas que poderia ser vacinado.
Certo. E para cada pessoa, sua segunda dose tem que ser da mesma vacina que a primeira, seja da Pfizer ou da Moderna. Mas ela se mostrará duradoura? E se os cientistas descobrirem que as pessoas precisarão de um complemento após dois anos? Importará se eu tiver tomado uma vacina da Pfizer ou da Moderna da primeira vez? Espero que não, mas não tenho uma resposta clara.
Todos nós precisamos de registros precisos.
Existem muitos desafios com o aspecto da informação em uma rede de fornecimento. As empresas estão enviando produtos para distribuidoras, mas elas não são responsáveis por quem será vacinado. Isso é responsabilidade dos hospitais e das farmácias. Como os produtores saberão quando e para onde enviar o produto? Os diferentes [agentes] têm que compartilhar muita informação.
Isso diz muito sobre como funciona a saúde pública. Existe um sistema para pedir e enviar vacinas, mas ele não te diz o que fazer após a chegada da vacina ao destino. Então, normalmente, cada estado utiliza seu próprio sistema para registrar quem foi vacinado; isso é chamado de registro de imunização. Esses dois sistemas não conversam entre si. Sem a criação de outro controle, será difícil para os estados saberem se tal cidade possui 50 doses sobrando, ou se está completamente sem nada. O governo federal investiu em um sistema que permitiria tal capacidade, mas os estados estão utilizando seus próprios.
Existem sistemas que podem fazer isso, como aqueles que coordenam testes de diagnósticos. Mas eles precisam ser desenvolvidos. Eles fornecem duas vantagens reais: uma é que se pode dizer aos consumidores aonde ir para receber uma vacina; não os lugares que as receberam, mas onde há doses sobrando. E se as empresas souberem como está o inventário, poderão tomar decisões melhores quanto a onde enviar o próximo lote. Ou os pontos podem aumentar a divulgação, a fim de fomentar a demanda pela vacina, porque sabemos que haverá pessoas hesitando em recebê-las.
Eu imagino que os calendários de priorização de vacinas que estão sendo debatidos poderiam dificultar ainda mais a obtenção de informações sobre as doses — sabe, funcionários da linha de frente devem ser vacinados primeiramente, depois professores, e por aí vai.
A Academia Nacional de Medicina recomenda fases: primeiro, funcionários de alto-risco em instalações de saúde e funcionários da linha de frente. Depois pessoas com problemas de saúde pré-existentes que as colocam em risco, depois, professores, depois jovens adultos, e depois o resto de nós. Também existem conversas sobre enviar as primeiras vacinas para áreas onde há alta prevalência da doença. Tudo isso complica o desafio da obtenção de informações sobre as vacinas.
Como é provável que apenas grandes instituições ofereçam um armazenamento ultrafrio, foi sugerido que a vacina da Pfizer poderia acabar indo para as grandes cidades e a vacina da Moderna poderia ir para áreas com menor densidade populacional. Mas essas são empresas comerciais. Por que limitariam seus mercados?
Podemos imaginar que os recipientes da Pfizer podem ser mais apropriados para cidades populosas. Quando tivermos um suprimento adequado de todas as vacinas, então o mercado irá escolher entre a Moderna e a Pfizer levando em conta as diferenças de refrigeração— contanto que a segurança e a eficácia sejam altas o suficiente. Mas nos estágios iniciais, com grande demanda por uma vacina, eu acredito que muitas decisões serão tomadas com base no que é melhor para o sistema. Se descobrirmos que há uma diferença na segurança e na eficácia, entretanto, então esbarramos em uma questão de igualdade: ou as cidades ou as zonas rurais estarão recebendo uma vacina inferior.
Mark Fischetti
Publicado em 30/11/2020