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No Canadá, povos indígenas alcançam sucesso no combate à COVID-19

Ênfase na autodeterminação contribuiu para uma diminuição drástica no número de casos e de mortes, em comparação à população não-indígena do país

Comunidade First Nation realiza Dia de Protesto contra o Colonialismo nas ruas. Créditos: Shutterstock


O impacto desigual da COVID-19 sobre a saúde de certos grupos, incluindo negros, latinos e indígenas, estava claro desde o início da pandemia. O povo indígena Navajo Diné Bikéyah marcou presença nas manchetes durante o mês de maio de 2020 quando sua taxa de infecção per capita de COVID-19 era superior a de qualquer  estado nos  Estados Unidos.

Mas, embora no Canadá  as taxas de COVID-19 sejam altas entre a comunidade negra e nos bairros que abrigam  mais grupos minoritários, no caso dos  povos indígenas do país ela está abaixo de 25% daquela registrada entre  os canadenses não-indígenas, além apresentarem  uma taxa de mortalidade que equivale a apenas um terço e uma taxa de recuperação 30% mais alta.  

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A habilidade das comunidades indígenas do Canadá de lidarem com a pandemia foi amplamente baseada no planejamento que fizeram das próprias estratégias de saúde pública, após terem enfrentado  surtos de doenças anteriores e terem sido negligenciados por autoridades de saúde durante muito tempo. 

Os cuidados com a saúde entre as nações indígenas no Canadá sempre enfrentaram  dificuldades, associadas a desigualdades sociais e estruturais nas moradias, à  pobreza e a outros determinantes sociais — “as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem”, como define a Organização Mundial da Saúde. Elaborar uma resposta de saúde pública efetiva durante a atual pandemia exigiu dessas comunidades recuperarem o controle e a fiscalização de medidas de tratamento em suas próprias localidades. Os indígenas na Turtle Island, a terra hoje conhecida como América do Norte, compartilham o direito fundamental da autodeterminação sobre todas as atividades relacionadas a suas vidas e seu bem-estar, tal como está articulado pela Declaração das Nações Unidas de 2007 sobre os Direitos das Pessoas Indígenas. 

A colonização europeia   não  somente a acabou com a autonomia de comunidades indígenas, mas fez da medicina e da saúde pública ferramentas nesse processo. Em comunidades indígenas na América do Norte e na Austrália, as práticas de saúde pública que lidavam com as infecções que os colonizadores trouxeram com eles geralmente se tornavam pretexto para impor medidas de controle social. A quarentena estabeleceu os perímetros “claros” da comunidade e determinou quais atividades eram permitidas e quais seriam excluídas durante um surto. As práticas de cura locais dos indígenas foram sufocadas ou banidas. O conhecimento indígena de medicina e cura foi ignorado, e as pessoas foram descritas como primitivas, infantis e sujas. No Canadá, os indivíduos indígenas foram enviados para fora de suas comunidades para tratamento e segregados em “Hospitais de Índios”. Essas atitudes e ações paternalistas e racistas diminuíram os direitos indígenas e sua soberania. 

As práticas de medicina história e a saúde pública continuam a afetar a maneira que as comunidades indígenas vêem os cuidados em saúde. Um estudo de pessoas com tuberculose na região de Nunavut, por exemplo, descobriu que experiências anteriores com abordagens de saúde pública para o tratamento da tuberculose na década de 1950 continuam a impedir que alguns membros dos povos Inuit busquem por tratamentos para essa doença. Um participante do estudo descreveu que sentia falta de respeito e autonomia, o que afetava sua adesão às recomendações de saúde pública: “Os funcionários de saúde não tratam os pacientes com respeito. É como se eles não se empenhassem em dar explicações, como se os pacientes não fossem entender de qualquer maneira e os médicos sabem o que é melhor. Eles geralmente não falam sobre essas coisas para as pessoas. Elas não são informadas para que possam ter uma escolha. Os médicos ou enfermeiros que escolhem por elas.” 

Além de corroer a confiança e acabar com o acesso à medicina tradicional, a colonização contribui para as atuais desigualdades em fatores  sociais para a saúde, como moradia, pobreza e seguridade alimentar, que pode expôr populações indígenas a um risco maior de contrair a COVID-19 e desenvolver uma infecção grave. 30% das casas nos povos Navajo não possuem acesso à água encanada, impossibilitando as recomendações de higienização das mãos. A obesidade e a diabetes do tipo 2 — condições relacionadas, em partes, ao acesso a alimentos saudáveis e acessíveis — também são mais comuns, e levam a um riso maior de resultados graves de doenças infecciosas. Por último, o acesso a cuidado de alta qualidade é limitado pelo subfinanciamento crônico do Serviço de Saúde Indígena (IHS, em inglês), parte do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, que fornece cuidado para todos os membros de tribos reconhecidas pelo governo federal nos Estados Unidos. O orçamento da IHS é de US$4,078 per capita, bem menor se comparado com os US$13,185 gastos com  cada beneficiário do programa federal Medicare.  De acordo com dados de 2018, 25% das vagas  para médicos, enfermeiros e outros funcionários do IHS não foram preenchidas. 

  Em muitas instâncias, desigualdades estruturais similares minaram a habilidade de ordenar recomendações de saúde pública em muitos povos indígenas e nas  comunidades Inuit e Métis no Canadá. A infraestrutura inadequada contribuiu para diversas disparidades nas taxas de infecção entre indígenas e não-indígenas durante a pandemia de H1N1 em 2009. Mas, durante a atual pandemia, o conhecimento adquirido do surto de H1N1, além dos alertas sobre a chegada da COVID-19, permitiu que  os líderes indígenas imediatamente fechassem suas fronteiras e atualizassem seus planos de resposta à emergências, sabendo que uma vez que a COVID-19 entrasse em suas comunidades, ela iria se espalhar rapidamente. 

A COVID-19 conseguiu entrar profundamente entre os povos Navajo, mas, uma vez que conseguiu, os líderes reagiram rapidamente para garantir financiamento para equipamentos de proteção pessoal, estações de água, fornecimento de comida e acesso a testes. Membros da comunidade Navajo de todas as idades demonstraram generosidade, desenvoltura, colaboração e resiliência na organização e na entrega do apoio. Heather Kovich, médica que trabalha no Serviço de Saúde Indígena, descreve que “onde o serviço de celular é fraco e a banda larga é inexistente, as redes humanas são fortes e extensivas”. Essa resposta ilustra a centralidade da comunidade como um componente de resiliência e bem-estar, uma ideia central para muitas nações indígenas. Enquanto as taxas de COVID-19 continuam a aumentar em muitos estados, elas se estabilizaram entre os Navajo, apesar das altas taxas iniciais, e apesar da infraestrutura limitada para apoiar a saúde e o bem-estar. 

  O fechamento da fronteira e a resposta baseada na comunidade à COVID-19 sustentam o princípio da autodeterminação, segundo o qual  povos indígenas possuem o direito de determinar seus próprios caminhos para a cura e a saúde de suas comunidades. Outros exemplos incluem o uso de materiais educacionais inovadores  e campanhas de saúde pública que foram criadas por diversas comunidades indígenas. Esses materiais têm como base as medidas de prevenção,  isolamento e contenção determinadas pelas instituições de saúde pública, e as inserem  no contexto local de vários povos, línguas, culturas e ambientes sociais e físicos. 

Um bom  exemplo, que se vale da sabedoria ancestral, é a adaptação da Roda de Quatro Direções da Medicina, um conceito que adapta múltiplas dimensões do bem-estar, e vai além do foco em saúde física e mental dos modelos biomédicos de cuidado. O Centro para Práticas Sábias em Saúde Indígena no Hospital Universitário das Mulheres em Toronto, no Canadá, criou uma roda medicinal dedicada a fornecer uma abordagem holística para a prevenção das doenças e estimular resiliência física, emocional, mental e espiritual durante a pandemia. Ela traz orientações como  a higienização das mãos, a desinfecção, o gerenciamento de visões de mundo conflitantes, a proteção aos  mais velhos e mais  jovens e a preservação das conexões espirituais.  

Outro exemplo claro da auto-determinação na resposta a COVID-19 é uma iniciativa que começou durante a pandemia para coletar dados específicos a população indígena na incidência da doença. Isso ocorre em consonância  com acordos legais que protegem a informação pessoal, e o controle de garantia, propriedade e possessão de dados em diversas comunidades indígenas pelo globo. 

Apesar da diversidade entre as nações indígenas na América do Norte, a resiliência e o compromisso com  o bem-estar da comunidade, diante dos impactos sem precedentes da COVID-19, são valores que elas possuem em comum. Nem sempre é possível  isolar nossas comunidades do contágio da COVID-19, nem se consegue mitigar a falta de investimento, por anos,  em fatores sociais de saúde por parte de  governos locais e federais. Entretanto, a COVID-19 demonstra que a soberania, liderança e o conhecimento das nações indígenas é um fundamento essencial para a saúde pública durante  momentos de crise. 

Lisa Richardson

Allison Crawford
Publicado em 27/10/2020

  

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