NASA propõe novas regras para a próxima corrida à Lua
Se tudo correr conforme o planejado, e dado o avanço dos projetos de viagens lunares que estão sendo tocados por vários países, bem antes que esta década termine estaremos explorando a Lua e seus recursos. Mas será que essa nova fronteira será palco de competição ou colaboração? O conjunto de propostas recém-lançado pela NASA chamado de Acordos de Artemis visa assegurar a cooperação internacional e um “futuro seguro, pacífico e próspero” para todos na Lua – desde que respeitem os acordos e façam parcerias com os EUA.
Os acordos decorrem do programa Artemis, da NASA, lançado pela administração do presidente Donald Trump e por um decreto do Conselho Nacional do Espaço que estabeleceu o ano de 2024 como data para um retorno dos astronautas à Lua. O programa Artemis envolve desenvolver atividades no espaço cislunar – isto é, entre a Terra e a lua – e na própria superfície lunar.
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A NASA ofereceu ao público um primeiro vislumbre dos acordos em 15 de maio, em um discurso que descreveu na forma de ideias gerais os dez princípios propostos. Fundamentadas no Tratado do Espaço Exterior das Nações Unidas de 1967, essas novas diretrizes contêm poucos detalhes, mas geralmente sugerem normas de atuação, com os EUA liderando o exemplo. Por exemplo, os acordos pedem “zonas de segurança” que protejam futuras bases da Lua contra danos ou interferências de países ou empresas rivais que operem nas proximidades.
Essa diretiva levanta uma questão: o que na Lua, além da infraestrutura básica de apoio aos astronautas, poderia valer a pena proteger? As respostas da ciência são tão incertas quanto tentadoras, e se concentram nos hipotéticos recursos que poderiam existir em regiões lunares pouco pesquisadas. Muitos pesquisadores estão focados nas profundezas das crateras mais frias e escuras da Lua, espalhadas pelos polos lunares avessos ao sol. Lá parece haver abundância de água em formato de gelo, propícia para ser extraída e convertida em oxigênio, em água potável e até em combustível de foguete. Alguns prevêem a mineração desse gelo para criar colônias lunares auto-sustentáveis, bem como depósitos de combustível no espaço cislunar para diversos usos. Alguns até especulam que a Lua possa eventualmente fornecer hélio-3 – um isótopo depositado em sua superfície pelos ventos solares – como um combustível potente para alimentar reatores de fusão em uma Terra carente de energia.
Se estes recursos serão ou não explorados em um modelo do tipo “quem chegar primeiro, leva” vai depender, até certo ponto, da adoção dos Acordos de Artemis ou de outras propostas de políticas semelhantes. E nem todas as nações com acesso ao espaço veem a proposta da NASA como algo benéfico: será que os acordos poderiam ser mais um exemplo da visão excepcional que os EUA têm de si mesmos?
PONTOS DE VISTA DIFERENTES
Os Acordos de Artemis devem ser considerados no contexto de outros desenvolvimentos e declarações recentes, diz Henry Hertzfeld, diretor do Instituto de Política Espacial da Universidade George Washington. Em particular, ele observa, em 6 de abril, o Presidente Trump assinou uma ordem executiva que aborda a política dos EUA em relação à recuperação e uso de recursos no espaço sideral, incluindo a Lua e outros corpos celestes. Ele declara que “o espaço sideral é um domínio legal e fisicamente especial da atividade humana, e os Estados Unidos não o veem como um bem comum global”.
Tomada em conjunto, Hertzfeld diz, essa ordem executiva e os Acordos de Artemis sugerem que os EUA podem estar procurando definir unilateralmente aspectos da lei espacial que sempre foram um tanto vagos, e para os quais diferentes nações apresentaram pontos de vista genuinamente diferentes. “A questão não respondida é se nossos parceiros mais próximos no espaço concordarão com as posições que tomaremos – e o que dizer de outros países como Rússia e China – e, portanto, quem acabará sendo nosso parceiro nessa missão de exploração espacial”, acrescenta ele. “Muitas dessas questões envolvem tanto aspectos políticos e emocionais quanto aqueles ligados à legislação espacial. O diabo aqui estará nos detalhes e em como os acordos reais são negociados. Isso ainda não aconteceu: não existe ainda nenhum acordo Artemis assinado com qualquer outro país.”
Hertzfeld diz que está esperando para ver o que, exatamente, estará nos acordos finais: quais trechos outras nações aceitarão, e quais serão rejeitadas. Mas, já há uma idéia do que os líderes espaciais russos pensam sobre a proposta.
“O princípio da invasão é o mesmo, seja na Lua ou no Iraque: é criada uma ‘coalizão de pessoas dispostas’ e, em seguida, driblando a ONU e até mesmo a OTAN, se for o caso, elas marcham para o seu objetivo”, twittou Dmitry Rogozin, chefe da Roscosmos, agência espacial da Rússia. O resultado, acrescentou, seria “um novo Iraque ou Afeganistão”. Os aspectos do plano criticados por Rogozin incluem aqueles relacionados a zonas de segurança e mineração lunar.
Vai depender muito do texto oficial final dos acordos, diz Joanne Gabrynowicz, especialista em política espacial, ex-editora-chefe do Journal of Space Law. “Até que se concluam os processos formais internos do governo dos EUA e as negociações com potenciais parceiros, não saberemos quais serão os acordos reais”, diz ela. Ela observa que a maioria dos princípios preliminares divulgados pela NASA não acrescenta realmente nada de novo à paisagem das leis espaciais. Alguns deles, no entanto, levantam questões novas e importantes, como a introdução de novas definições de “interferência prejudicial” e zonas de segurança, bem como regras propostas para a extração e utilização de recursos lunares. Ainda não se sabe como quaisquer parceiros em potencial – e muito menos os EUA – incorporarão esses itens em seus planos de exploração lunar, diz Gabrynowicz.
NAÇÕES COM IDEIAS PARECIDAS
“É importante que os Estados Unidos demonstrem liderança no estabelecimento de políticas razoáveis e viáveis em relação ao acesso e uso de recursos lunares”, diz o geólogo Harrison “Jack” Schmitt, que caminhou na Lua como participante da missão Apollo 17. Ele também é membro do Grupo Consultivo do Conselho Espacial Nacional, liderado pelo vice-presidente dos EUA, Mike Pence.
“Juntamente com várias nações com idéias semelhantes, em reação às disposições onerosas da Convenção da Lei do Mar, o governo Reagan assumiu essa liderança em 1983-1984, em relação ao acesso a recursos do fundo do mar”, lembra Schmitt. “Também é importante que os Estados Unidos agora tenham negado claramente o Acordo da Lua de 1979, baseando-se nas disposições muito mais razoáveis do Tratado do Espaço Exterior de 1967”.
A lei do mar a que Schmitt se refere, conhecida na íntegra como Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, estabeleceu um regime abrangente de lei e ordem nos oceanos do mundo. Estabeleceu regras que governam todos os usos dos mares e seus recursos, sejam eles controle ambiental, pesquisa científica marinha, atividades econômicas e comerciais, transferência de tecnologia ou solução de disputas relacionadas a assuntos oceânicos. Alguns formuladores de políticas consideraram que ele – e seu sucessor mais focado no espaço, o Acordo da Lua – foram exagerados para sufocar a pesquisa e o comércio.
APRECIANDO O TERRENO
Ao avaliar o valor da Lua, devemos considerar mais do que sua riquezas mineralógicas ou valor científico. A importância estratégica do seu campo de visão para a Terra, por exemplo, é inegável – seja como um farol brilhante da paz ou como uma sentinela da guerra. Desde o início da era espacial, os planejadores de defesa debatem se o espaço cislunar pode se tornar outra arena extraterrestre para conflitos entre nações, assim como ocorre com as órbitas mais baixas da Terra.
Dadas as perspectivas de atividades do século 21 na Lua por entidades privadas e governamentais, o satélite natural poderia ser uma área econômica de desenvolvimento que precisa de proteção nos próximos anos e décadas? De fato, a defesa de rotas comerciais e linhas de comunicação são tradicionais tarefas dos militares. E esse arranjo provavelmente continuará sendo verdadeiro quando o espaço cislunar se tornar “terreno elevado” – uma posição que traz vantagem ou superioridade.
A Agência de Desenvolvimento Espacial do Departamento de Defesa já elaborou planos para desenvolver satélites de vigilância para monitorar as proximidades da Lua e até veículos avançados de manobra para alcançar rapidamente áreas de interesse no espaço profundo. Além disso, avaliou-se a utilidade militar de extrair gelo da água lunar para propulsão e para outros usos.
É claro que os EUA não são os únicos a avaliarem estes possíveis usos. Um relatório recente preparado pelo Instituto Projeto 2049 para a Comissão de Revisão de economia e segurança do congresso observou que, em 2013, a China se tornou a primeira potência espacial a pousar na Lua desde a missão da União Soviética em 1976. “As várias motivações para a China incluem a mineração de hélio-3 como substituto para os combustíveis fósseis e a energia solar ”, escrevem os autores do relatório.
Embora afirme que os benefícios diretos do programa de exploração lunar do país para o Exército de Libertação Popular permanecem incertos, a avaliação do relatório ainda alerta: “Como parte de seu programa de exploração lunar, a China demonstrou capacidades militares críticas no espaço. “
INCLUSIVO OU EXCLUSIVO?
Apesar de seu potencial para desencadear conflitos, a iniciativa Artemis tem potencial para ser um programa unificador, diz Joan Johnson-Freese, professora de assuntos de segurança nacional no Escola de Guerra Naval dos EUA. Sua avaliação baseia-se particularmente em outra grande iniciativa: o estabelecimento da Força Espacial, um sexto ramo das forças armadas dos EUA.
Embora a proteção aos interesses econômicos dos EUA fora da Terra seja parte dos argumentos para a criação da Força Espacial, Johnson-Freese diz que não viu nenhuma declaração de empresas privadas de desenvolvimento espacial solicitando tal proteção. “Embora exista um modelo que lembra que foram construídos fortes do exército foram colocados [na fronteira oeste dos EUA] para proteger a construção das ferrovias e o desenvolvimento do comércio”, ela diz, “também existe um modelo que diz que o desenvolvimento econômico não ocorre em áreas de potencial conflito militar. Então, a Força Espacial incentivará o desenvolvimento espacial ou afugentará os investidores? ”
Os acordos de Artemis, acrescenta Johnson-Freese, não indicam se a cooperação internacional será um arranjo inclusivo ou exclusivo como a Estação Espacial Internacional (que excluiu a participação da China). “A abordagem exclusiva simplesmente impulsionou a China a desenvolver sua própria tecnologia, e provavelmente de forma mais rápida do que através da cooperação”, diz ela, observando que suas observações não expressam as opiniões do governo dos EUA, do Departamento de Defesa, da Marinha ou da Escola de Guerra Naval.
PROPOSTAS CONCRETAS
Quem está contente com os Acordos de Artemis é Michelle Hanlon, cofundadora do For All Moonkind, um grupo com sede nos EUA que se concentra em preservar e proteger os seis locais de pouso lunar da missão Apollo como uma herança humana comum. “Eu certamente não chamaria [os acordos] de não insuficientes para começar o debate”, diz ela. “De fato, eu iria [ao] extremo oposto e os chamaria de ótimos começos. O tempo das especulações acadêmicas acabou. Os seres humanos estão voltando para a Lua. E nós, como comunidade internacional, precisamos estar preparados para gerenciar as atividades na superfície lunar de maneira pacífica, eficaz e eficiente. Os Acordos de Artemis são a primeira oferta concreta de um país com acesso ao espaço sobre como lidar com questões incômodas.
Quanto aos próximos desdobramentos, Hanlon vê sinais do Departamento de Estado dos EUA e da NASA de que eles entraram em negociações com os aliados “habituais”, incluindo os países parceiros da Estação Espacial Internacional, mas também com outros países que ainda não têm acesso ao espaço. “Será interessante ver como serão os acordos operacionais, mas imagino que os advogados da NASA e do Departamento de Estado trabalharão duro para implementar esses acordos”, diz ela.
A opinião de Hanlon é que, com sua proposta ambiciosa, a NASA está antecipando – e planejando – o início inevitável da extração e da utilização de recursos lunares em moldes comerciais, e talvez até em moldes competitivos. “Os acordos certamente não dizem que as atividades de mineração ou as atividades comerciais devem prevalecer sobre todas as demais”, diz ela. “É exatamente o oposto: eles reafirmaram o compromisso da NASA e dos EUA em compartilhar a ciência”.
Leonard David
Publicado em 01/06/20