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Nasa irá mapear todos os seres vivos que habitam a Estação Internacional Espacial

Levantamento dos bilhões de minúsculos “astronautas microbianos” que residem no laboratório orbital pode nos ajudar na preparação de viagens tripuladas a Marte

A astronauta da NASA Kate Rubins trabalhando a bordo da Estação Espacial Internacional (EEI), em outubro/20. Suas tarefas durante a missão incluem coletar amostras para mapear o microbioma da EEI. Crédito: NASA

Os astronautas nunca viajam sozinhos para o espaço. Eles são acompanhados por até 100 trilhões de bactérias, vírus e outros microorganismos, números que poderiam colocar a saúde humana em risco. Ainda assim, sabemos muito pouco sobre como essas comunidades de “caroneiros” microscópicos reagem à microgravidade. Nem mesmo conhecemos o espectro completo das espécies de viajantes espaciais que vivem a bordo da Estação Espacial Internacional (EEI).

Mas novos estudos estão sendo projetados para mudar essa situação.  No mês passado, astronautas coletaram amostras no interior da EEI para construir um mapa tridimensional inédito do microbioma de lá. A iniciativa de empreender um censo microbiano espacial é o primeiro passo para entender, prevenir e mitigar surtos perigosos, seja a bordo da estação, durante um voo de longa duração para Marte, ou mesmo nos hospitais após o retorno à Terra.

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Nós somos constantemente invadidos por micróbios. Desde as bactérias que revestem nossas vísceras até aqueles ácaros que vivem na base dos nossos cílios, pequenos são demais para serem vistos. Estima-se que o total de micróbios dentro de nós e sobre o nosso corpo rivalize com o número de células humanas. “Podemos pensar nas pessoas como ecossistemas ambulantes”, diz Pieter Dorrestein, biólogo químico da Universidade da Califórnia (UC), em San Diego. 

Na verdade, a maioria dessas criaturas minúsculas é muito importante e pode exercer  impactos amplos sobre nossa saúde, afetando a imunidade, o coração e talvez até a saúde mental. Por isso, os cientistas costumam referir-se ao microbioma como uma espécie de “órgão invisível”. A  multidão  de micróbios  que vive dentro de nós é tamanha  que sua massa total quase pode se aproximar do peso do nosso cérebro.

Então, não é de surpreender seja fundamental entendermos o modo como o microbioma se comporta nos voos espaciais,  se quisermos enviar astronautas em missões de longa duração até Marte (e além). E os cientistas não estão preocupados somente com o microbioma humano: eles também se questionam sobre o microbioma da espaçonave. 

Veja-se, por exemplo, a estação espacial russa Mir. Em 1998, cerca de três anos antes de a estação ser tirada de órbita e cair  no Oceano Pacífico, cientistas identificaram dezenas de espécies de bactérias, fungos e ácaros escondidos atrás de um painel de serviço. “Nunca imaginei que um objeto inanimado, uma máquina tal como a estação, que funciona perfeitamente, possuísse um microbioma semelhante ao de um ser  vivo, como os humanos”, diz a médica e astronauta da Nasa Serena M. Auñón-Chanceler.

No entanto, contrariando a noção do espaço como um ambiente estéril e inerte, qualquer espaçonave  inevitavelmente irá  hospedar uma variedade de micróbios em quantidades suficientes para arrepiar qualquer astronauta, o que pode ser perigoso. “Você consegue se imaginar em um longo voo e, de repente, começa a pegar, digamos, uma bactéria carnívora e não consegue se livrar dela?” Dorrestein diz. “Esses são os tipos de consequências que podem ocorrer.”

Não é uma ideia maluca. Em 2006, uma equipe de cientistas enviou uma cultura da bactéria salmonela para um passeio de 11 dias no ônibus espacial Atlantis, apenas para descobrir que, quando os micróbios retornaram à Terra, eles foram capazes de matar camundongos mais facilmente. Bactérias que escaparam dos limites rígidos da Terra também podem se tornar mais resistentes aos antibióticos — uma receita para o desastre, dado o fato de que voos espaciais de longa duração tendem a enfraquecer o sistema imunológico dos astronautas.

O novo projeto, lançado pelo Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa e pela Universidade da Califórnia em San Diego, pode ajudar a mitigar essa ameaça microbiana. Em fevereiro, a astronauta Kate Rubins pesquisou 1.000 locais diferentes em toda a EEI, uma amostragem cerca de 100 vezes maior do que o número padrão de cotonetes recolhidos em estudos de rastreamento de micróbios. Em geral, eles se concentram em partes mais suspeitas nos espaços de convivência, como cozinhas, banheiros e áreas de exercícios. Esse material será posto em armazenamento refrigerado e enviado de volta à Terra daqui a alguns meses, onde os cientistas irão analisar as assinaturas genéticas e nomear os diversos micróbios, a fim de elaborar um mapa tridimensional do microbioma completo da EEI.

Além disso, cada cotonete vai capturar moléculas de rastreamento de alimentos, óleos, pele e muito mais. Essa perspectiva entusiasma particularmente a Dorrestein, que está trabalhando no projeto. Atualmente, os cientistas sabem muito pouco sobre os tipos de moléculas presentes na EEI que possibilitam o crescimento das diferentes comunidades microbianas. O novo mapa os ajudará a conectar moléculas ou nutrientes específicos a micróbios específicos. 

Feitas estas associações, os cientistas já poderão  elaborar diretrizes para impulsionar o crescimento de micróbios benéficos e, por outro lado, para reduzir aqueles considerados mais perigosos. Isso pode ser tão simples quanto empregar materiais de construção específicos em uma espaçonave para Marte. Tudo isso sugere que o problema de uma “nave espacial doente” poderia ser parcialmente solucionado  antes mesmo que ela chegasse à plataforma de lançamento.

Mas Kasthuri Venkateswaran, microbiologista do Laboratório de Propulsão a Jato e pesquisador chefe do projeto, está mais animado com as medidas de proteção que podem ocorrer durante o translado. Embora as amostras atuais estejam sendo enviadas de volta à Terra, ele pontua que, nas missões futuras, os astronautas precisarão eliminar esses “invasores”. “Quando se vai a  outro planeta,  não existe um FedEx para enviar as amostras de volta”, diz. 

Ainda que os cientistas sejam capazes de realizar análises genômicas a bordo da EEI, o processo não é particularmente rápido e, no caso de um surto perigoso, cada segundo é valioso (pense em quanto tempo normalmente se leva para obter os resultados de um teste PCR para COVID-19). “Queremos garantir que teremos tudo isso sob controle — hoje em dia, já há bastante consciência de como um pequeno inseto pode causar uma reviravolta no mundo”, diz David Klaus, microbiologista espacial da Universidade do Colorado em Boulder.

Para combater esse problema, os cotonetes que Rubin usou no ensaio de varredura da estação possuem  duas cabeças. Uma delas destina-se a coletar micróbios para detecção simples, enquanto a outra pretende capturar seus metabólitos — isto é, os subprodutos químicos naturais dos microrganismos. Depois que Venkateswaran e seus colegas criaram um banco de dados ligando micróbios específicos a certos metabolitos, eles podem construir pequenos biossensores que procuram apenas por metabólitos. Imagine um dispositivo portátil que pudesse diagnosticar a presença de bactérias ou fungos na espaçonave e alertar os astronautas sobre um surto imediatamente, semelhante ao que faz um detector de monóxido de carbono.

Uma alerta gerado por esse sistema ( o qual, estima Venkateswaran,  levará de cinco a dez anos para se concretizar) desencadearia uma ação imediata, já que os astronautas intensificariam os protocolos de limpeza para evitar um surto a bordo. “Isso contribuirá para uma melhor manutenção dos habitats do futuro”, diz Venkateswaran. Os astronautas a bordo da EEI já trabalham duro para manter a população do microbioma sob controle. Todas as semanas, eles aspiram as aberturas e limpam as superfícies com lenços desinfetantes. 

Auñón-Chanceler estima que, quando ela estava em órbita, cada um dos seis astronautas da tripulação passava cerca de três horas por semana limpando. Isso equivale a 18 horas por semana para o volume habitável total da EEI de apenas 388 metros cúbicos (cerca de metade do espaço para passageiros em um Boeing 747). Mas, dadas as circunstâncias particulares da EEI, toda essa higienização é necessária. “Lá em cima, a comida não cai somente no chão”, diz. “Ela vai para o teto, gruda nas paredes.Tem comida por todo lado. Então, é limpeza 3-D.”

Esse tipo de limpeza cuidadosa leva alguns cientistas a rejeitar os temores quanto a um surto no caminho para Marte. “Não acho que a influência das bactérias seja realmente um grande obstáculo aos voos espaciais de longa duração, porque as evidências sugerem o contrário”, diz Klaus. “Houve pessoas vivendo [na EEI] como equipes rotativas, continuamente, por mais de 20 anos. E não houve nenhum tipo de surto lá.”

Auñón-Chancellor observa que a simples detecção de  bactérias perigosas não é necessariamente motivo de alarme; só será  preocupante se os micróbios deixam os astronautas doentes. “Vejo isso mais como uma identificação e um alerta”, diz ela. “Então, estamos apenas observando, mapeando e esperando para ver o que fazem essas bactérias naquele ambiente estressante”, acrescenta.

Mas Venkateswaran está preocupado não só com os riscos para os astronautas, mas também com as chances de contaminação microbiana em qualquer outro mundo visitado por eles. “Os astronautas são, basicamente, um patógeno para o planeta”, diz Auñón-Chancellor. “Eles são um novo microbioma que, de repente, está pisando em Marte. Até mesmo o traje espacial, com o qual eles sairão, transportará carregará na sua superfície o microbioma adquirido na missão”. Se os cientistas pudessem mapear melhor o microbioma naquela vestimenta, talvez eles poderiam limpá-lo melhor. Venkateswaran está esperançoso de que a pesquisa ajude os cientistas a projetar trajes incrementados, com articulações que impedem o escape dos menores micróbios.

Essas possibilidades únicas não param por aí. Para Liz Warren, diretora sênior de programa do U.S. National Laboratory do EEI, o aspecto mais instigante de toda essa pesquisa tem pouco a ver com espaço. Qualquer ambiente parcialmente fechado — uma casa, um avião, um hospital — terá seu próprio microbioma. Portanto, aprender como evitar que certos micróbios se multipliquem no espaço (ou como detê-los, se eles se multiplicarem ) proporcionará  boas lições para ambientes semelhantes na Terra. 

Por exemplo, considere outro projeto em execução na EEI que testa a eficácia de revestimentos antimicrobianos fabricados pela Boeing. Se esses revestimentos funcionarem no espaço, onde os micróbios podem ser muito mais perigosos, eles funcionarão na Terra. Resumindo: a EEI é, em si mesma, um laboratório incrível. “Não se pode fazer isso na Terra; não se pode tirar a gravidade da cena”, diz Klaus. “Estar em microgravidade é como possuir, pela primeira vez, um microscópio  diferente. Podemos observar comportamentos que, de outra maneira, não poderíamos.”

Por Shannon Hall

Publicado em 12/03/2021

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