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Na história da aviação a controvérsia continua

Perspectiva histórica mostra que a evolução inicial da aviação a motor teve lugar na Europa de forma independente e sem a contribuição dos irmãos Wright

As comemorações do centenário dos vôos dos irmãos Wilbur e Orville Wright de 1903, em dezembro, nos Estados Unidos, deram ensejo a um renovado interesse nos estudos de história da aviação. Apesar da publicação de matérias muitas vezes simplistas e da cerrada barragem publicitária em curso nos Estados Unidos, a verdade é que a controvérsia subsiste através dos anos, a propósito de vários pontos concernentes ao real papel dos Wright, não apenas em relação à primazia do vôo em avião, como também sobre a efetividade da contribuição deles ao progresso da aviação. Persistem as dúvidas até agora não resolvidas (e aparentemente insanáveis) sobre o caráter e as cifras (datas, durações, velocidades etc.) dos vôos de 1903 e 1905, na falta de testemunhas e registros técnicos adequados. Os Wright se recusavam a demonstrar publicamente seu aparelho, e mesmo aos possíveis compradores. Não o fizeram tampouco nas ocasiões propícias em que prêmios foram oferecidos na França (ganhos por Santos Dumont, Farman e outros) e nos próprios Estados Unidos (ganhos por Glenn Curtiss, a quem os Wright processavam por infringência de patente).

Por outro lado, contrastando com o sigilo e isolamento dos Wright, na
Europa, e sobretudo na França, o ambiente aeronáutico era inteiramente
outro. Há fartos registros históricos e técnico-científicos sobre as
realizações de Santos Dumont e outros pioneiros. Havia livre troca de idéias e experiências entre os contendores. As evidências históricas e científicas, quando analisadas com seriedade e isenção, constituem poderoso argumento para atribuir a estes pioneiros, e não aos Wright, o maior acervo de serviços prestados ao desenvolvimento da ciência e da técnica do vôo, na fase primordial e decisiva da aviação. Pelas suas invenções e contribuições, com razão foi Alberto Santos Dumont cognominado “Pioneiro do Ar” por Thomas A. Edison, e “Pai da Aviação” por franceses e brasileiros.

Fred C. Kelly, o biógrafo oficial dos irmãos Wright, relata que na primavera de 1907 um congressista americano de Nova York enviou um recorte da Scientific American ao presidente Theodore Roosevelt, que o encaminhou ao secretário da guerra, sugerindo que a máquina voadora dos Wright fosse avaliada. Mas estes exigiram um pagamento de 100 mil dólares antes que o aparelho fosse demonstrado, e o assunto morreu aí. Os Wright se recusavam a fornecer fotografias, planos e detalhes técnicos para publicação. Era natural que a atitude de mistério e segredo dos Wright despertasse o ceticismo e a incredulidade de todos, seja no público, na imprensa ou nos meios técnicos. Pelo menos até os primeiros vôos públicos dos Wright na França em agosto de 1908 (utilizando motor francês Bariquand et Marre), as dúvidas sobre os alegados vôos anteriores, de 1903 e 1905, persistiram.

Gabriel Voisin, o pioneiro construtor e aviador francês ­ colaborador e
depois competidor de Santos Dumont ­ explica a obsessão dos Wright pelo
segredo, primeiro como um traço deplorável de personalidade (o açambarcador, aquele que acumula e esconde mercadorias etc.), mas mais importante, pela necessidade de esconder graves deficiências técnicas que ainda não haviam resolvido, entre elas: o aparelho não decolava autonomamente, tinha insuficiente motorização, e não voava sem condições adequadas de vento, sendo de pouco valor prático. Voisin, a propósito da visita de Wilbur à França, onde fora recebido com entusiasmo pelo público e pelos colegas aviadores, comenta: “Talvez ele (depois que saiu do isolamento) tivesse compreendido que a pesquisa científica nunca é obra de um homem só, que o homem que forja o elo final trabalha ainda na sombra de outros que o precederam e que um \’segredo\’ científico é uma contradição em termos e uma afronta ao progresso humano”. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-18), 150 mil máquinas voadoras foram construídas pelos beligerantes alemães e franceses, e nesse tempo, os americanos, cerceados pelos processos de patente, não apresentaram nem uma linha sequer de produção de aviões. O sistema de wing warping (torção da asa) para controle lateral patenteado pelos Wright caiu em desuso, substituído pelos ailerons (asículas móveis auxiliares), utilizados por Santos Dumont já em alguns vôos do 14bis.

Quanto ao desempenho “espantoso” do modelo Wright voado em Les Mans em 1908, trata-se de um exagero, já que no mesmo ano Santos Dumont voava o Demoiselle, e tanto ele como outros aviadores franceses realizavam quase rotineiramente proezas iguais ou superiores, em termos de duração, manobrabilidade, velocidade etc.

Sem diminuir o valor dos experimentos e criações dos irmãos Wright, a perspectiva histórica mostra que a evolução inicial da aviação a motor teve lugar na Europa ­ e sobretudo na França ­ de forma totalmente independente e sem a contribuição dos irmãos Wright.,The Wright Brothers,
Fred C. Kelly, Ballantine Books, 1943, 1950.

Men, Women and Kites,
Gabriel Voisin, Putnam, 1963 (tradução do original francês “Mes dix mille
cerfs volants”, 1961).

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