Mito: raça não determina personalidade do cão
Muitas pessoas tem noções pré-concebidas sobre o comportamento de diferentes raças de cachorro. Golden retrievers são vistos como brincalhões e carinhosos, e pit bulls não raramente são vistos como hostis e agressivos. Chihuahuas são classificados como barulhentos e temperamentais, enquanto buldogues são descritos como tranquilos e sociáveis.
Essas estereótipos de comportamento estão arraigados à maneira como muitas pessoas veem as raças de cães, de dogues alemães a shih-tzu. Antes de começar a trabalhar no comportamento canino, “eu acreditava que essa ideia era diferente da realidade”, afirma Kathleen Morrill, geneticista de cães na Faculdade Médica Chan da Universidade de Massachusetts. “Todos os livros sobre raças nos dizem que selecionar uma delas é o fator mais importante a ser considerado quando adquirimos um cachorro.”
Mas em um novo estudo publicado na quinta (28/04) na Science, Morrill e seus colegas mostram que a raça de um cachorro não prediz seu comportamento. Eles explicam que a maior parte das tendências comportamentais nos diferentes cachorros antecedem a canicultura (cruzamento e criação de cães) moderna, que foca na aparência física.
Para determinar o impacto da raça no comportamento, Morrill e seus coautores fizeram enquetes com os donos de 18.385 cachorros na Arca de Darwin, uma iniciativa de ciência comunitária na qual as pessoas podem relatar o comportamento de seus pets. Para este projeto, os pesquisadores perguntaram aos donos mais de 100 perguntas, sobre desde o tamanho do cão, sua cor, até sua sociabilidade e estilo de vida.
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Ainda que puros-sangue fiquem com o primeiro lugar em shows de cães e dominem os estudos genéticos, o conjunto de dados deste estudo refletiu o fato da maioria dos caninos domésticos do mundo serem vira-latas. Metade dos donos que responderam ao questionário possuíam cães de raça mista, o que representou uma seleção complexa de diferentes raças e comportamentos em potencial.
Para colocar esses caninos “compostos” em contexto genético com seus irmãos puro-sangue, os pesquisadores também coletaram amostras de saliva e sangue de 2.155 cães na pesquisa. Eles então sequenciaram o DNA dos diferentes cães. “A genética nos permitiu separar as peças do quebra-cabeça — especialmente para cães de raça mista que possuem múltiplas ascendências — de onde o DNA mais diferente entre animais com diferentes características”, explica Morrill.
Depois de avaliar os dados da enquete e sequenciar o DNA com uma bateria de análises estatísticas, Morrill e seus coautores identificaram 11 regiões genéticas fortemente associadas com o comportamento dos cães, como frequência de uivo e sociabilidade com humanos. Mas nenhuma dessas regiões genéticas de comportamento eram específicas para nenhuma das 78 raças examinadas no estudo. Até mesmo traços comportamentais que pareciam ser característicos de uma raça, como treinabilidade (biddability) — a capacidade de uma cachorro a responder a comandos — variavam significativamente entre diferentes animais da mesma raça.
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Os pesquisadores concluíram que a raça explica apenas 9% da variação comportamental entre cães. Treinabilidade e algumas outras características que parecem estar conectadas em algum nível com a raça são, provavelmente, restos deixadas para trás de práticas de cruzamentos antigas, que focavam principalmente em funções úteis — como caça e pastoreio — e aconteceram ao longo de períodos muito maiores.
Os pesquisadores não identificaram nenhum comportamento comum a todos os cães de uma raça. Por exemplo, eles descobriram que a maioria dos labradores raramente uivavam. Ainda assim, 8% dos donos desses cães relataram que seu cão tinha propensão para uivar. Da mesma forma, 90% dos galgos (greyhounds) não enterravam seus brinquedos. Mas diversos donos identificaram seus galgos como um “enterrador” frequente.
O sexo e idade de um cão são os melhores indicadores para certos comportamentos, como hábitos de banheiro ou nível de interação com brinquedos; ainda que nem todos eram influenciados. “As pessoas carregam uma crença muito arraigada de que as raças de cães diferem no seu comportamento, mas eu acho que temos que aceitar que essas diferenças não são tão extremas”, afirma Morrill.
A quantidade de intersecção entre os comportamentos de diferentes raças faz sentido, considerando que a maioria das raças atuais são relativamente novas, no sentido evolucionário. Ainda que humanos tenham começado a cruzar cães 2 mil anos atrás, a maioria dos cães que conhecemos surgiram durante a era Vitoriana, quando estava na moda cruzar cães para criar certas características estéticas e aderir a linhagens puras. Mas, considerando que os cães evoluíram de lobos pré-históricos há 10 mil anos, o surgimento das raças atuais passou num piscar de olhos.
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Ainda que a relação entre a raça de um cão e seu comportamento parece ser pequena, ela exerce uma influência nas expectativas culturais para a personalidade de diferentes cães. Algumas jurisdições dos EUA possuem leis específicas para certas raças, que regulam ou até proíbem raças que são vistas como agressivas ou perigosas, como os pit bulls. Ser dono de um cachorro com uma reputação negativa também pode resultar em taxas mais altas de seguros de saúde.
De acordo com Lisa Gunter, pesquisadora no Laboratório de Ciência Canina da Universidade do Estado do Arizona, esses estereótipos comportamentais também possuem um impacto profundo nos animais em abrigos. Na sua própria pesquisa, Gunter descobriu que cães colocados na categoria dos pit bulls ficam em abrigos mais de três vezes mais tempo que animais de aparência semelhante colocados em outra categoria de raça. As percepções negativas das raças também as torna candidatos mais frequentes à eutanásia. “Não conseguir sair vivo do abrigo ou ter que ficar lá muito mais tempo simplesmente baseado na classificação de raça — esse é um destino complicado”, afirma Gunter, não envolvida no estudo.
Entender que cães não são programados para se comportar de uma ou outro maneira pode ajudar a melhorar a imagem dessas raças injustamente perseguidas. “Isso reforça a ideia de entender o indivíduo diante de você, e como ele está se comportando”, afirma Gunter, “e não se deixar levar por pré-noções sobre como cada raça se comporta.”
Jack Tamisiea
Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 28/04/2022; aqui em 02/04/2022.