Mapeamento mostra que geleiras têm 20% menos gelo que o esperado
Cientistas produziram o primeiro atlas mundial de geleiras, mapeando cerca de 98% das geleiras montanhosas e revisando as estimativas anteriores para suas quantidades de gelo. Ao considerar as galerias de todo planeta, o estudo revelou que elas têm 20% menos gelo disponível para o aumento do nível do oceano. O estudo tem implicações importantes para a disponibilidade e acessibilidade à água doce pelo mundo.
“Descobrir quanta água está armazenada nas geleiras é um passo-chave para antecipar os efeitos das mudanças climáticas na sociedade”, afirma Romain Millan. Ele é pós-doutorando no Instituto de Geociências Ambientais (IGE), da Universidade Grenoble Alpes (França), e principal autor do estudo, publicado na revista Nature Geoscience. “Com essa informação, estaremos mais próximos de saber o tamanho dos maiores depósitos de água glacial, e também considerar como reagir a um mundo com menos geleiras”.
Impactos e revisões
A revisão mostrou que em algumas geleiras havia mais gelo, como as do Himalaia, que, apesar de estarem derretendo rapidamente, possuem 37% a mais do que em estimativas anteriores. Enquanto outras possuem menos, como as da cordilheira dos Andes tropicais, com 23% menos gelo — algo especialmente preocupante, considerando que elas são uma das fontes de água doce mais importantes para a população da região.
“A tendência geral de aquecimento e perda de massa permanece inalterada”, explica Mathieu Morlighem. Ele é professor de ciências da Terra na Faculdade de Dartmouth (EUA) e coautor do estudo. “Esse estudo fornece o quadro necessário para modelos oferecerem projeções mais confiáveis de quanto tempo resta para essas geleiras”.
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Nas novas estimativas, os cientistas consideraram apenas o gelo que ameaça aumentar o nível dos oceano — excluindo, portanto, blocos de gelo flutuando ou submersos. Considerando estes dados, o novo aumento projetado para o nível do oceano causado exclusivamente pelo derretimento de geleiras caiu de 33 centímetros para 25,4 cm, aproximadamente.
No entanto, o derretimento das geleiras consideradas no estudo corresponde a apenas 25-30% do aumento total do nível do oceano, ameaçando cerca de 10% da população mundial que vive abaixo de 3 metros de altura dos mares. Outros fatores contribuintes, como as placas de gelo da Groenlândia e Antártica, capazes de efeitos muito maiores, foram desconsiderados — indicando que o problema persiste.
“A descoberta de que temos menos gelo é importante e terá implicações para milhões de pessoas ao redor do mundo”, afirma Morlighem. “Ainda assim, até mesmo com essa pesquisa, não temos um entendimento perfeito da quantidade de água presa nessas geleiras”.
Um mapa-múndi de geleiras
Para produzir este atlas, os pesquisadores estudaram mais de 250 mil geleiras montanhosas pelo globo através de mais de 800 mil pares de imagens de satélites, produzidas entre 2017 e 2018 pelos satélites Landsat-8, da NASA, e Sentinel-1 e 2, da Agência Espacial Europeia.
Estes dados foram processados por mais de 1 milhão de horas de computação no IGE, criando mapas e modelos do fluxo de gelo das geleiras — algo essencial para entender suas dinâmicas e para produção de estimativas mais precisas. Isso, por sua vez, permitiu o refinamento das estimativas de sua velocidade de movimento e sua profundidade.
“Geralmente pensamos que as geleiras são gelo sólido que pode derreter no verão, mas, na verdade, o gelo flui como um xarope viscoso sob o próprio peso”, afirma Morlighem. “O gelo flui de altas altitudes para elevações mais baixas, onde ele eventualmente vira água. Usando imagens de satélites, pudemos rastrear do espaço os movimentos dessas geleiras em escala global e, a partir daí, deduzir a quantidade de gelo por todo o mundo”.
Composição de imagens mostrando a movimentação do gelo (mais violeta, mais veloz) das Montanhas Karakoram, no Himalaia. Crédito: IGE-CNRS, Dartmouth College, ©Google Earth
Ajustando as medições
Segundo a equipe, as estimativas anteriores consideravam que as galerias eram mais profundas do que realmente são — algo que os modelos de fluxo de gelo ajudaram a discernir — e havia contagens duplas das mesmas montanhas. Além disso, as imagens de satélite ajudaram a incluir algumas nunca antes mapeadas, localizadas na Nova Zelândia, nas cordilheiras no sul da América do Sul e em ilhas sub-Antárticas. O estudo indica que apenas cerca de 1% das geleiras do globo foram medidas com precisão até agora.
Ainda assim, os pesquisadores acreditam que as estimativas continuam incertas e apenas com estudos de campo será possível obter medidas precisas. “Nossas estimativas são melhores, mas ainda incertas, particularmente em regiões nas quais as pessoas dependem das geleiras [para água]”, explica Millan. “Coletar e compartilhar medições é algo complicado, pois as geleiras estão espalhadas por muitos países com diferentes prioridades de pesquisa”.
“Comparar as diferenças globais com as estimativas anteriores é apenas um lado da questão”, aponta Millan. “Se começarmos a analisar localmente, as mudanças se tornarão ainda maiores. Para projetar corretamente a evolução de galerias, capturar detalhes sutis é muito mais importante do que o volume total”.
Com essas questões em mente, e considerando a importância destes estudos para entender os efeitos do aquecimento global e aumento do nível do oceano, além do fornecimento de água doce para diversas populações, os pesquisadores pedem por uma reavaliação da evolução das geleiras através de modelos numéricos, e também observações mais diretas das geleiras no Himalaia e nos Andes tropicais — os locais onde foram identificadas as maiores disparidades.
Publicado em 09/02/2022.