Lêmure indri é identificado como o primeiro mamífero não humano capaz de cantar com ritmo
Mamíferos emitem vários sons, mas é raro que seus chamados lembrem música. A razão disso? Uma falta de ritmo — a sequência temporal ou cadência que organiza sons, e as pausas entre eles, em um padrão repetível. Até agora, os humanos eram os únicos mamíferos conhecidos por usarem um ritmo para criar música. Para descobrir como poderíamos ter adquirido esse “ouvido”, esse senso auditivo para compasso ou andamento, cientistas resolveram investigar as capacidades musicais de outras espécies.
Um grupo de pesquisadores percorreu as selvas de Madagascar, munidos de microfones para gravar os notáveis chamados do lêmure indri (Indri indri). Esses animais costumam viver empoleirados no alto da floresta tropical, onde — embora sejam a maior das espécies de lêmure — podem ser difíceis de divisar. Mas indris são fáceis de escutar; seus chamados altos e penetrantes são reconhecíveis a mais de 1,5 quilômetro de distância. São donos de um grande e variado repertório de vocalizações, que inclui um prolongado canto agudo e lamentoso que reverbera pela floresta.
Indris vivem em grupos familiares, e suas distintivas canções os ajudam a se comunicarem uns com os outros. Como em uma simples banda de família, os adultos cantam duetos plangentes, tristes, antes que suas crias se juntem a eles para produzir um coro cacofônico. Esses cantos são muito “perturbadores e lindos”, diz Andrea Ravignani, biomusicólogo no Instituto Max Planck de Psicolinguística em Nijmegen, na Holanda.
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De início, essas vocalizações dos indris podem parecer caóticas, mas a bióloga Chiara De Gregorio, da Universidade de Turim, garante que soam menos confusas à medida que são escutadas com mais frequência. “Quando você se acostuma a elas, de fato é possível reconhecer um padrão nelas”, observa. “Quando os indris começam uma frase musical, você sabe o que esperar, nota após nota.” Em um novo estudo, publicado em Current Biology, De Gregorio, Ravignani e seus colegas analisaram as gravações de 636 cantos de indris individuais, coletados de 20 grupos familiares diferentes, para determinar se esse lêmure vociferante realmente tem um padrão.
A equipe “desmembrou” cada gravação em seus elementos básicos para mensurar a duração das notas e as pausas. Os pesquisadores compararam a extensão dos intervalos e descobriram que os cantos muitas vezes se decompunham em razões ou relações rítmicas de 1:1 (quando os intervalos entre os sons têm a mesma duração, como acompanhar ou cantar junto com um metrônomo) ou 1:2 (quando o primeiro intervalo tem metade do tempo do segundo). Ambas são comuns na música humana.
De acordo com os pesquisadores, os indris usam esses padrões para estruturar seus cantos — o que faz deste o primeiro caso confirmado de um mamífero não humano dotado de ritmo. Suas conclusões se aplicaram a todos os indris que gravaram; machos e fêmeas cantavam a tempos diferentes, mas ambos empregavam os mesmos padrões rítmicos. Esse lêmure também mostrou a capacidade de manter uma cadência constante à medida que diminuíam o ritmo de suas canções — um processo conhecido como ritardando na música clássica.
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Embora “compositores” indris e humanos possam utilizar algumas estruturas similares, é mais que provável que cada grupo tenha desenvolvido suas aptidões musicais separadamente. Cerca de 77,5 milhões de anos se passaram desde que o ancestral comum de humanos e indris existiu, um abismo temporal evolutivo que torna muito improvável que ritmo musical fosse uma característica ancestral. Ravignani sugere que pressões sociais similares moldaram tanto indris como humanos em “cantores” em momentos distintos — um exemplo da chamada evolução convergente. Os benefícios exatos que essa aptidão confere aos lêmures ainda são desconhecidos, mas os autores especulam que organizar cantos em padrões repetíveis pode torná-los mais fáceis de aprender para os animais jovens, ou talvez ajudar as famílias de indris a se coordenarem quando precisam defender seus territórios.
Elizabeth St. Clair, antropóloga biológica na Universidade Johns Hopkins que estuda a evolução do trato vocal de primatas, confessa ter ficado surpresa diante das similaridades rítmicas entre cantigas indris e humanas. “Parece que essa é uma característica individual desses lêmures específicos que não é observada em muitos outros mamíferos ou até em aves”, comenta St. Clair, que não participou do estudo. Ela suspeita que os gibões, símios inferiores do Sudeste Asiático conhecidos por coordenarem seus chamados, também podem usar ritmo para estruturar suas vocalizações.
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A decomposição de cantos indris indica que esses animais compartilham um subjacente senso de ritmo com os humanos, mas suscita mais perguntas sobre como essas criaturas se comunicam. Os pesquisadores esperam que o estudo da capacidade rítmica dos indris acrescente urgência aos esforços de conservação desses primatas. O intensivo desmatamento e a caça devastaram as populações de lêmures indris (e de gibões); alguns especialistas calculam menos 1.000 indris na natureza. Dados atuais sugerem que as florestas de Madagascar encolherão até 93% até 2070.
À medida que cientistas tentam entender melhor por que primatas começaram a usar música, escutar os cantos de indris silvestres será crucial. “O sistema de comunicação deles é uma janela indireta para suas mentes”, resume Ravignani. “Ao olharmos para sua capacidade de produzir sons rítmicos, podemos saber muito do que se passa em suas cabeças.”
Jack Tamisiea
Publicado originalmente na edição de março da Scientific American Brasil; aqui em 13/05/2022.