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Campo profundo: como tirar fotos de “nada” mudou a astronomia

Imagens regiões “vazias” do céu feitas pelo Telescópio James Webb (JWST) e outros instrumentos estão revelando mais do Universo do que jamais pensamos ser possível.
Campo profundo.

Uma comparação entre a primeira imagem de “campo profundo” do Telescópio Espacial Hubble, de 1995 (à esquerda), e a primeira imagem semelhante do Telescópio Espacial James Webb (à direita). Ambas as imagens cobrem um trecho aproximadamente correspondente do céu, mas revelam populações de galáxias significativamente diferentes. A do James Webb, por exemplo, explora galáxias mais distantes no tempo cósmico para revelar os objetos mais antigos do Universo primitivo. Crédito: R. Williams (STScI), Equipe de Campo Profundo do Hubble e Nasa/ESA (esquerda); Nasa, ESA, CSA e STScI (direita)

Em 11 de julho, o mundo ficou impressionado com a revelação da imagem astronômica mais profunda já obtida, capturada pelo Telescópio Espacial James Webb (JWST), o mais novo observatório “carro-chefe” da Nasa. No fundo de um aglomerado de galáxias chamado SMACS 0723, visto como era há 4,6 bilhões de anos, inúmeras galáxias de diferentes formas e tamanhos aparecem como gemas brilhantes na escuridão do cosmos. Alguns desses faróis distantes já estavam brilhando quando o Universo tinha apenas algumas centenas de milhões de anos. Para entender como alcançamos essa conquista notável — como os astrônomos navegaram para ilhas galácticas tão distantes de nós no espaço e no tempo, coletando fótons cuja jornada começou incrivelmente próxima do Big Bang — ajuda conhecer as origens das observações de campo profundo.

A origem do primeiro campo profundo do James Webb remonta ao início dos anos 90, com o lançamento do seu antecessor, o Telescópio Espacial Hubble. O conceito de observações de campo profundo ainda estava em sua infância naquela época. O Hubble foi projetado principalmente para observações direcionadas — os astrônomos apontariam o telescópio para uma fonte em um ponto específico no céu e fariam exposições (ou “integrações”) conforme o necessário, dependendo do brilho da fonte.

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Mas o Hubble também poderia ser usado para imagens de campo profundo, que pressupõe o oposto: os astrônomos apontariam o telescópio para uma região do céu desprovida de qualquer fonte visível e usariam um tempo de exposição muito longo para alcançar “profundidade” no cosmos e poder observar o máximo possível de fontes de luz fracas. De seu poleiro na órbita baixa da Terra, acima do oceano de ar que dispersa a luz estelar do nosso planeta, o Hubble era, na época, a melhor plataforma de imagens de campo profundo que os astrônomos já conheceram.

Nem todos acreditavam que a abordagem seria revolucionária, no entanto. Em um famoso artigo publicado na Science em 1990, John Bahcall e colegas do Instituto de Estudos Avançados argumentaram que uma imagem de campo profundo do Hubble não revelaria significativamente mais galáxias do que telescópios terrestres. Bahcall, um gigante da astrofísica, era amplamente conhecido por sua solução para o problema dos neutrinos solares e seus cálculos da distribuição de estrelas em torno de um buraco negro massivo. Ele contribuiu fundamentalmente para o desenvolvimento do Telescópio Espacial Hubble desde seu conceito original na década de 1970 até seu lançamento. Apesar de acreditar que o campo profundo do Hubble não revelaria novas populações de galáxias, ele antecipou que tais imagens poderiam apoiar o estudo da morfologia e tamanho de galáxias de brilho fraco e da demografia de quasares, uma expressão bastante antiquada para a acreção dos buracos negros supermassivos.

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Essas expectativas mornas reduziram qualquer urgência para tentar fazer imagens de campo profundo com o Hubble. A primeira tentativa não ocorreu até os últimos meses de 1995, após um reparo óptico muito necessário. O telescópio passou então 10 dias de tempo de exposição olhando para um pequeno pedaço do céu na constelação da Ursa Maior, apenas cerca de 8% do diâmetro angular da Lua como vista da Terra. Mas, quando, semanas depois, os astrônomos viram a imagem resultante, conhecida como Campo Profundo Norte, eles imediatamente perceberam que era um presente de Natal para as próximas eras.

As estrelas da Via Láctea são muito escassas na região alvo, permitindo que o Hubble investigue o abismo cósmico como um espectador espiando por um olho mágico. O telescópio viu quase 3.000 galáxias fracas de diferentes formas e tamanhos — muito mais do que o esperado, algumas delas a 12 bilhões de anos-luz de distância. O Hubble não estava apenas explorando o espaço, mas também sondando o tempo, coletando a luz das estrelas que havia sido emitida eras atrás durante épocas anteriores do Universo. A imagem rapidamente se tornou icônica.

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Uma questão crucial surgiu: a região rica em galáxias revelada pelo Campo Profundo Norte era a normal? Ou os astrônomos tiveram sorte (ou azar, dependendo da perspectiva) de terem, por acaso, apontado o telescópio para um aglomerado incrivelmente denso de galáxias? Em 1998, o Hubble capturou o Campo Profundo Sul. A exposição foi semelhante, mas o telescópio apontou para o hemisfério celeste sul, o mais longe possível do primeiro ponto. Esta nova imagem confirmou que o Universo continha muito mais galáxias do que se pensava anteriormente, especialmente a grandes distâncias. Além de seus proeminentes valores científicos e inspiradores, os campos profundos do Hubble também representaram um desafio técnico, contendo mais de 10.000 galáxias que constituíram um dos primeiros desafios de “big data” que os astrônomos já enfrentaram.

Telescópios capazes de campo profundo.

O Telescópio Espacial Hubble, visto por um ônibus espacial na órbita baixa da Terra (acima), acompanhado por uma ilustração do Telescópio Espacial James Webb (abaixo) em sua localização no espaço profundo a mais de 1,5 milhão de quilômetros da Terra. Crédito: Nasa (acima); Medialab ESA/ATG (abaixo)

A imagem de campo profundo não está restrita ao espectro visível. Na virada do milênio, o mundo estava pronto para o primeiro campo profundo de alta energia, obtido com o observatório de raios-X Chandra, uma missão revolucionária da Nasa lançada em julho de 1999 e ainda ativa hoje. O Campo Profundo do Chandra foi obtido ao integrar, por cerca de um milhão de segundos, um pedaço do céu no Buraco de Lockman, uma janela desprovida de nuvens de hidrogênio e poeira da Via Láctea.

O Campo Profundo Sul do Chandra descobriu o Universo extremo; centenas de buracos negros, alguns muito remotos, apareceriam em uma imagem não tão visualmente espetacular quanto as fotografias do Hubble, mas mais densa em ciência. Este campo foi fotografado novamente com o Chandra, com uma exposição total de cerca de sete milhões de segundos, tornando-o o campo mais profundo já obtido em raios-x. Em 2003, o Campo Profundo Norte do Chandra foi revelado, com dados de mais de 500 fontes de raios-x.

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Com a adição ao arsenal do Hubble da Câmera Avançada para Sondagens (Advanced Camera for Surveys), o Campo Ultraprofundo do Hubble foi lançado em 2006. Esta foto histórica continha milhares de galáxias, algumas posteriormente mostradas com seu brilho quando o Universo tinha menos de um bilhão de anos. O Campo Ultraprofundo mostrou em detalhes sem precedentes a história da formação de galáxias; as mais distantes, conclusivamente pareciam ser menores e mais irregulares em forma do que as mais próximas, fornecendo evidências substanciais para apoiar as teorias da evolução das galáxias.

O Campo Ultraprofundo é essencialmente a imagem mais profunda que pode ser obtida em comprimentos de onda ópticos. Se uma galáxia está muito distante, sua luz óptica é deslocada para fora do alcance visível em direção ao comprimento do infravermelho; isso é uma consequência do redshift (desvio ao vermelho) cosmológico, no qual a expansão do Universo estica os comprimentos de onda da luz viajando através de enormes extensões de espaço intergaláctico. Uma câmera infravermelha era necessária para olhar mais longe no espaço e no tempo. Com a adição da câmera de infravermelho próximo ao Hubble, uma imagem de campo infravermelho ultraprofundo foi obtida em 2009, revelando galáxias brilhando apenas 600 milhões de anos após o Big Bang. Uma década depois, em 2019, foi revelado um campo profundo produzido com o telescópio espacial infravermelho Spitzer da Nasa. Ambas as imagens são terreno fértil para detectar galáxias na alvorada cósmica.

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Finalmente, a campanha Frontier Fields (Campos de Fronteira) do Hubble representou a vanguarda entre imagens de campo profundo e um prólogo para a primeira imagem do tipo do James Webb. Durante esta campanha observacional, concluída em 2017, o Hubble foi apontado para seis grandes concentrações de galáxias. A presença de uma densidade substancial de massa ao longo da linha de visão, de acordo com a teoria da relatividade geral de Einstein, pode dobrar e, assim, amplificar a luz que chega de uma fonte de fundo, com um efeito chamado lente gravitacional. Esses aglomerados de galáxias foram, portanto, usados ​​como uma lupa para ver ainda mais longe.

Além de estarem repletas de galáxias fervilhantes de um aglomerado, as imagens dos Campos de Fronteira são adornadas com estranhos arcos de luz, representando as imagens esticadas e amplificadas de galáxias de fundo, muito mais distantes do que o aglomerado e possivelmente muito fracas para serem observadas por diretamente com o Hubble. Essas fotos revelaram algumas das galáxias mais distantes e a primeira supernova por lente gravitacional.

Já se passaram quase 200 anos desde o advento da fotografia — quando a humanidade conseguiu capturar e gravar diretamente fótons para fazer imagens. Hoje, câmeras altamente complexas a bordo de um telescópio espacial a mais de um milhão e meio de quilômetros de distância, estão abalando nosso conhecimento do Universo, abrindo novas janelas para o espaço e o tempo. Um intervalo relativamente curto separa esses dois eventos, mas eles estão ligados pelo mesmo objetivo: alcançar uma compreensão mais profunda da natureza olhando para o que nossos olhos não podem ver.

Fabio Pacucci

Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 15/07/2022; aqui em 27/07/2022.

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