Físicos utilizam “dimensão temporal extra” para evitar erros em computadores quânticos
Quando os incas arquivaram documentos de impostos e do censo populacional, eles usaram um dispositivo feito de uma série de cordas chamado quipu, que codificava os dados em nós. Algumas centenas de anos no futuro, físicos estão trabalhando para desenvolver um equivalente moderno, ainda que muito mais sofisticado. Seu “quipu” é um novo estado da matéria criado dentro de um computador quântico, suas cordas são átomos e os nós são gerados por padrões de pulsos de laser que, na prática, abrem uma segunda dimensão de tempo.
Não é tão incompreensível quanto parece. O novo estado é a primeira de muitas dentro de uma família de “estados topológicos”, que foram primeiro identificados na década de 1980. Esses materiais apresentam ordem não na maneira como seus constituintes estão dispostos — como a distribuição regular de átomos em um cristal — mas sim nos seus movimentos dinâmicos e interações.
Assim, criar um novo estado topológico — isto é, um novo “estado da matéria” — é tão simples quanto aplicar combinações inusitadas de campos eletromagnéticos e pulsos de laser para criar uma certa ordem, ou “simetria”, aos movimentos e estados dos átomos de uma substância. Essas simetrias existem no tempo em vez do espaço; um exemplo são movimentos repetitivos induzidos.
Simetrias temporais podem ser difíceis de observar diretamente, mas elas podem ser reveladas matematicamente ao imaginar o material do mundo real como uma projeção com menos dimensões de um espaço hipotético de mais dimensões, de forma parecida com a maneira como um holograma bidimensional é uma projeção de um objeto tridimensional.
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No caso do estado recém-criado, que se manifesta em uma sequência de íons (átomos eletricamente carregados), suas simetrias podem ser acessadas ao considerá-lo como um material que existe em uma realidade de mais dimensões — com duas dimensões para o tempo.
“Me anima muito ver esse estado incomum da matéria produzido em um experimento real, especialmente porque a descrição matemática é baseada em uma teoria de dimensão extra de tempo”, afirma Philipp Dumitrescu, que estava no Instituto Flatiron, em Nova York, quando o experimento foi realizado. Um artigo descrevendo o trabalho foi publicado na Nature em 20 de julho.
Abrir um portal para uma dimensão extra de tempo — mesmo que seja apenas teórica — parece eletrizante, mas não estava no plano original da equipe. “Nós não estávamos muito motivados para ver quais novos estados conseguíamos criar”, afirma o coautor do estudo Andrew Potter, físico quântico na Universidade da Colúmbia Britânica. Só depois de imaginar a proposta da nova fase que a equipe percebeu que poderia utilizá-la para evitar erros nos dados processados por computadores quânticos.
Computadores clássicos padrão codificam a informação como sequências de bits — zeros e uns. Já as capacidades previstas para os computadores quânticos derivam da habilidade de seus bits quânticos, ou qubits, de armazenar valores de 1 ou 0, ou ambos ao mesmo tempo (pense no gato de Schrödinger, que está tanto vivo como morto simultaneamente).
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A maioria dos computadores quânticos codifica informações nos estados de cada qubit: por exemplo, em uma propriedade quântica interna de uma partícula chamada spin, que pode apontar para cima ou para baixo, correspondendo a 0 ou 1, ou ambos ao mesmo tempo. Mas qualquer interferência ou ruído — digamos, um campo magnético de fora — poderia arrasar o sistema cuidadosamente preparado ao trocar o estado dos spins a esmo, e até ao destruir os efeitos quânticos por completo, interrompendo os cálculos.
Potter criou uma metáfora para explicar essa vulnerabilidade: é como transmitir mensagens usando pedaços de linha, com cada um dobrado no formato de uma letra e colocado sobre o chão. “Você poderia ler tranquilamente, até que chegue uma leve brisa e arraste as letras para longe”, afirma.
Para criar um material quântico mais resistente a erros, a equipe de Potter analisou estados topológicos. Em um computador quântico que explore topologia, a informação não é codificada localmente no estado de cada qubit, mas entrelaçada por entre o material, globalmente. “É como um nó difícil de desfazer — como o quipu”, explica ele.
“Estados topológicos são interessantes porque oferecem uma maneira de proteger contra erros que faz parte dos próprios materiais”, adiciona o coautor Justin Bohnet, físico quântico na empresa Quantinuum em Broomfield, Colorado, onde os experimentos foram executados. “Esse processo é diferente dos protocolos tradicionais de correção de erros, nos quais constantemente fazemos medições em uma pequena parte do sistema para checar se há erros e então corrigi-los.”
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O processador quântico H1 da Quantinuum é feito de uma sequência de 10 qubits — 10 íons de itérbio — em uma câmera de vácuo, com lasers controlando rigidamente suas posições e estados. Essa “armadilha de íons” é uma técnica comum usada por físicos para manipular íons.
Na sua primeira tentativa de criar um estado topológico resistente a erros, Potter, Dumitrescu e seus colegas procuraram imbuir o processador com uma simetria temporal simples ao transmitir “empurrões” periódicos aos íons — todos alinhados unidimensionalmente — através de pulsos dos lasers repetindo em intervalos regulares. “Nossos cálculos ‘de guardanapo’ sugeriam que isso protegeria [o processador quântico] de erros”, afirma Potter. A técnica é similar a maneira como uma batida constante pode ajudar a manter marchinhas no ritmo.
Assim, para ver se estavam certos, os pesquisadores repetiram o experimento diversas vezes no processador da Quantinuum e checaram todas as vezes para ver se o estado quântico resultante de todos os qubits correspondia a suas previsões teóricas. “Não funcionou”, ri Potter. “Os resultados eram totalmente incompreensíveis.”
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A cada iteração, os erros acumulados no sistema degradavam sua performance dentro de 1,5 segundos. A equipe rapidamente entendeu que não era suficiente adicionar apenas uma simetria temporal. De fato, em vez de evitar que os qubits fossem afetados por impulsos e ruídos externos, os pulsos periódicos dos lasers ampliavam pequenas perturbações no sistema, piorando ainda mais o resultado, explica Potter.
Assim, ele e seus colegas voltaram à estaca zero até que finalmente chegaram em uma solução: se pudessem conectar um padrão de pulsação que era ele próprio ordenado (e não aleatório), mesmo que não repetisse de maneira regular, eles talvez pudessem criar um estado topológico mais resistente. Eles calcularam que um padrão “quase-periódico” desse tipo poderia potencialmente induzir múltiplas simetrias nos qubits de itérbio do processador, enquanto, ao mesmo tempo, evitava as amplificações indesejadas.
O padrão escolhido foi a já bem-estudada sequência de Fibonacci, na qual o próximo número é a soma dos dois anteriores. (Dessa forma, enquanto uma pulsação periódica alteraria entre duas frequências de dois lasers, como A, B, A, B…, uma pulsação na sequência de Fibonacci funcionaria como A, AB, ABA, ABAAB, ABAABABA, ….)
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Ainda que esses padrões tenham emergido de um arranjo complexo de dois conjuntos de pulsações variantes de lasers, o sistema, de acordo com Potter, pode ser resumido em “dois laser pulsando com duas frequências diferentes” que garantem que as pulsações nunca se sobreponham.
Para os propósitos desses cálculos, a parte teórica da equipe imaginou esses dois conjuntos diferentes de “batidas” em duas linhas do tempo separadas; cada conjunto está efetivamente pulsando em sua própria dimensão temporal. Dessa forma, essas duas dimensões podem ser rastreadas na superfície de um toro (donut). A natureza quase-periódica das linhas do tempo se torna clara pela maneira como elas giram ao redor do toro várias e várias vezes “em um ângulo estranho que nunca se repete”, afirma Potter.
Quando a equipe implementou o novo arranjo experimental com a sequência quase-periódica, o processador da Quantinuum ficou protegido de erros por todo o tempo do teste: 5,5 segundos. “Não parece muito em termos de segundos, mas é uma diferença enorme”, afirma Bohnet. “É um sinal claro de que a demonstração está funcionando.”
“É bem interessante”, concorda Chetan Nayak, especialista em computação quântica na Station Q, da Microsoft, na Universidade de da Califórnia em Santa Barbara, não envolvida com o estudo. Ele aponta que, de forma geral, sistemas espaciais de duas dimensões oferecem uma proteção melhor contra erros do que sistemas unidimensionais, mas eles são mais difíceis e mais caros de montar. “O sistema unidimensional deles age como um sistema bidimensional”, afirma. “É o melhor dos dois mundos.”
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Samuli Autti, físico quântico na Universidade Lancaster, na Inglaterra, também não envolvido no estudo, descreve o experimento como “elegante” e “fascinante” e está particularmente impressionado que envolve “dinâmicas” — isto é, as pulsações de laser e manipulações que estabilizam o sistema e movem seus qubits constituintes. Anteriormente, maioria das tentativas anteriores de melhorar computadores quânticos com topologia dependiam de métodos de controle menos ativos, tornando-os mais fixos e menos flexíveis. Portanto, afirma Autti, “dinamismo com proteção topológica é um grande objetivo tecnológico.”
O nome que os pesquisadores deram ao seu estado topológico da matéria reconhece suas capacidades potencialmente revolucionárias, ainda que não caiba na manchete: estado topológico protegido por simetria dinamicamente emergente, ou EDSPT (emergent dynamical symmetry-protected topological phase). “Seria bom pensar em um nome melhor”, admite Potter.
Além disso, houve um bônus inesperado do projeto: o teste original fracasso, com a sequência de pulsações periódicas, revelou que o computador quântico era mais propenso a erros do que imaginava-se. “Foi uma boa maneira de forçar o processador da Quantinuum e testar o quão bom ele é”, afirma Nayak.
Zeeya Merali
Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 27/07/2022; aqui em 03/08/2022.