Faltam evidências da eficácia de uso de plasma convalescente contra COVID-19
O Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, pediu à pessoas curadas de COVID-19 que doem seu plasma sanguíneo para que ele possa ser usado como modalidade de tratamento para a doença, alegando que esse recurso “apresentou uma resposta muito boa até agora”. Enquanto isso, existem rumores de que os reguladores de medicamentos dos Estados Unidos estão discutindo se a doação de plasma para outras pessoas pode ser autorizada como uma forma de terapia emergencial. Mas, em todo o planeta, pesquisadores e médicos estão preocupados que distribuir a distribuição de plasma sanguíneo possa prejudicar os ensaios clínicos que precisam ser feitos para determinar se este realmente pode ser um recurso útil contra a COVID-19.
Mesmo que alguns hospitais dos Estados Unidos já ofereçam esse tratamento em casos especiais, uma autorização para uso emergencial da Administração de Drogas e Alimentos (FDA) facilitaria o caminho para obter e a administrar o plasma convalescente — o líquido amarelo que permanece após ter as células removidas do sangue. (Atualização: o FDA, a agência reguladora dos EUA autorizou o uso do plasma em emergências, na segunda dia 23.)
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Mas, até agora, existem poucas evidências que o plasma realmente ajude os pacientes, e a decisão poderia frustrar os esforços para estudar seus efeitos, diz o ex-comissário da FDA, Robert Calioff, que agora chefia as políticas e estratégias clínicas da Verily and Google Healt, em São Francisco, na Califórnia. O medicamento antiviral remdesivir e o medicamento anti-inflamatório dexametasona são os únicos tratamentos que se mostraram eficazes contra a COVID-19 em ensaios clínicos rigorosos.
O plasma convalescente foi testado apenas em pequenos ensaios sem o poder estatístico para fornecer conclusões fortes. Os especialistas temem dizem que a autorização do FDA irá permitir às pessoas acessarem o tratamento diretamente, ao invés de se inscreverem para um ensaio clínico e arriscarem serem inscritas no grupo de controle que não recebe o plasma.
“É uma terapia potencial que poderia funcionar, e eu não acredito que seja errado disponibilizá-la” com uma autorização, diz Califf. “Mas nós devemos enfatizar nos anúncios de serviço público que a prioridade é a participação em ensaios randomizados”.
Falta de dados
Durante mais de um século, os médicos utilizaram plasma convalescente que se recuperaram de infecções para tratar outros com a mesma doença, incluindo o Ebola e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), que também é causada por um coronavírus. A ideia é que o plasma contenha anticorpos e proteínas envolvidas na regulação do sistema imunológico. E alguns desses anticorpos pode ter ajudado aos doadores a se recuperarem de sua infecção, por isso doá-lo à pessoa infectada poderia ajudar em sua recuperação. Mesmo com poucos dados sobre a efetividade do plasma convalescente para pessoas com outras doenças, era lógico testar o tratamento contra a COVID-19 quando o surto começou. Mas os pesquisadores lutaram para entender sua efetividade no meio da pandemia, diz Michael Joyner, anestesiologista na Clínica Mayo em Minnesota.
Primeiro, o plasma convalescente de diferentes pessoas varia muito na concentração de anticorpos, o que dificulta seu estudo, No começo, os pesquisadores não conseguem medir e padronizar o nível de anticorpos em cada lote. Mesmo agora, os pesquisadores em algumas partes do mundo não conseguem testar se os plasma contém “anticorpos neutralizantes” poderosos, que podem prevenir a replicação viral, porque a avaliação é cara e precisa de certos procedimentos de contenção, diz o especialista em doenças infecciosas, Fazle Chowdhury, da Universidade Bangabandhu Sheikh Mujib Medical em Dhaka, Bangladesh.
Coletar dados de ensaios clínicos rigorosos também está sendo muito difícil, porque os médicos estão administrando plasma convalescente para pessoas em estado grave com base no uso “compassivo”. Nos Estados Unidos, um programa especial financiado pela Biomedical Advanced Research and Development Authority (BARDA) forneceu plasma convalescente seguindo essa lógica para mais de 66 mil pessoas — sem realizar um grupo de controle. Os investigadores do programa, incluindo Joyner, reuniram dados e publicaram os resultados de 5,000 pessoas com casos graves de COVID-19, sugerindo que a terapia é segura.
“Nós realmente não sabemos o que está acontecendo quando se usa esse recurso de um modo compassivo”, diz Chowdhury. “Se for para utilizamos o plasma convalescente, deve ser em ensaios clínicos”. Os pesquisadores dos Estados Unidos reclamaram que o projeto financiado pela BARDA excluiu participantes potenciais e doadores de plasma de ensaios randômicos que produziriam dados mais rigorosos.
“Na falta de um grupo controle, Joyner e seus colegas tiraram vantagem do fato que a contração de anticorpos de SARS-CoV-2 não era padronizada. A equipe analisou mais de 35 mil recipientes de plasma, e comparou os resultados de quem recebeu o plasma com níveis relativamente baixos de anticorpos com as descobertas de pessoas que receberam o plasma com níveis maiores. O estudo, publicado no servidor de pré-publicações medRxiv antes de ser revisado, descobriu que os participantes que receberam a transfusão logo após seu diagnóstico e tiveram altas concentrações de anticorpos apresentaram uma melhora e tinham menos chances de morrer no período do estudo do que aqueles que receberam uma transfusão mais tardia com concentrações menores de anticorpos. “Essa foi uma descoberta extremamente importante”, diz Cassandra Josephson, pediatra na Universidade Emory, que vêm cuidando de crianças que tiveram COVID-19.
Mas a falta da randomização dificulta o rascunho de uma conclusão firma a partir do estudo, alerta Anthony Gordon, anestesista no Imperial College de Londres. Por exemplo, pacientes que receberam o tratamento logo após o diagnóstico podem ter sido tratados em centros médicos que forneceram um cuidado melhor de sáude, ele diz, aumentando sua chance de um resultado melhor. “Nós apenas estamos observando uma associação”, ele diz, “nós não estamos vendo causa e efeito”.
Completando os vazios
Substituindo os grandes ensaios clínicos convencionais com poder estatístico, alguns pesquisadores estão tentando reunir evidências a partir de testes menores. Outra pré-publicação ainda não revisada de Joyner e seus colegas, publicada no medRxiv em 30 de julho, compila dados de mais de 800 participantes de dezenas de estudos na esperança de melhorar o poder estatístico. A equipe descobriu que o tratamento gerou uma queda na mortalidade entre 26% e 13%.
Mas é difícil firmar uma conclusão a partir de dados combinados de diferentes estudos, alerta Josephson. Os ensaios tratam pessoas com diversas gravidades da doença, utilizando doses diferentes de plasma e monitorando diversos sinais de sucesso.
E ainda há dados para analisar. No Reino Unido, o epidemiologista Martin Landray e o pesquisadores de doenças infecciosas Peter Horby, ambos da Universidade de Oxford, estão liderando o grande ensaio RECOVERY, que está testando diversas terapias, incluindo plasma convalescente, em pessoas hospitalizadas com COVID-19. Além disso, Gordon e seus colegas estão testando plasma convalescente em pessoas em tratamento intensivo, em um ensaio internacional chamado REMAP-CAP. Mas a primeira onda da pandemia no Reino Unido passou faz tempo, então Landray diz que não espera ter os resultados até o fim deste ano, que é quando alguns modelos epidemiológicos prevêem a volta dos casos de COVID-19.
Landray alerta que não se deve assumir que o plasma convalescente funciona até a chegada dos dados. “Vimos, nessa epidemia,como hipóteses científicas bem-intencionadas podem estar erradas”, ele diz, apontando para a hidroxicloroquina como um exemplo. O medicamento contra a malária se mostrou promissor contra a COVID-19 em ensaios pequenos e iniciais e em estudos de laboratório, mas por fim se mostrou que ele não tem nenhum efeito contra a doença.
“Existe uma boa ciência por trás do plasma convalescente e uma boa razão para acreditar que possa ser um tratamento efetivo”, diz Landray. “Mas no fim nós não temos dados o suficiente para afirmar isso”.
Esse artigo é reproduzido com permissão e foi publicado primeiramente em 19 de agosto de 2020
Heidi Ledford
Nature Magazine
Publicado em 25/08/2020