E se não houver um nono planeta no Sistema Solar?
Há uns quatro anos, quando Ann-Marie Madigan se deparou pela primeira vez com a ideia de que poderia haver um grande planeta ainda desconhecido à espreita, atrás da órbita de Plutão, ela se sentiu empolgada mas cética. A evidência para a existência de um mundo assim era circunstancial, e ainda permanece: padrões estranhos nas órbitas de pequenos objetos situados na regiões mais externas do Sistema Solar conhecido. Os defensores da teoria do ‘nono planeta’ ( lembrando que Plutão não pertence mais ao registro de planetas do Sistema Solar) dizem que tais padrões podem ser produzidos pela influência gravitacional de um planeta robusto. Mas Madigan, uma astrofísica agora na Universidade de Colorado em Boulder, questionou-se se outras explicações, mais prosaicas, poderiam ser suficientes.
À época, ela estava estudando como estrelas podem empurrar umas as outras para diferentes órbitas enquanto rodopiam ao redor de um buraco negro supermassivo. E percebeu que não havia nada que impedisse que seu trabalho pudesse ser aplicado também a objetos menores e em órbita do Sol.
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Partindo desse início modesto, Madigan e alguns de seus colaboradores desenvolveram uma teoria totalmente diferente para explicar os comportamentos estranhos que podem ser vistos nos arredores do Sistema Solar. O efeito da “gravidade coletiva” de um disco de detritos glaciais, difuso e esparso (e até agora muito hipotético), que se situasse muito além de Plutão, poderia alterar a órbita dos objetos muito distantes que podemos ver, de modo que se assemelharia aos efeitos causados por um planeta grande. Um disco assim seria composto por milhões de corpos pequenos, a maioria deles remanescentes da formação do Sistema Solar há muito tempo.
“O que estamos fazendo é levar em consideração a força gravitacional exercida por todos esses pequenos corpos”, diz Madigan. “Incluindo aquelas forças gravitacionais acabou sendo muito importante”. Dado que o disco putativo possui massa suficiente — muitas vezes mais que a Terra — cerca de um bilhão de anos ou mais, as pequenas interações gravitacionais entre e de seus membros constituintes poderiam esculpir o além do Sistema Solar após Plutão em maneiras outrora explicadas pelo Planeta Nove, ela mantém. O efeito seria um pouco como a borboleta proverbial que bate suas asas para eventualmente causar uma tempestade a distância.
Madigan e seu estudante de pós-graduação Alexander Zderic agora avançaram sua teoria em dois novos estudos postados no servidor de pré-publicações arXiv.org. Num dos estudos submetido ao Astronomical Journal, eles mostram como a gravidade coletiva poderia produzir os mesmos tipos de órbitas inclinadas e amontoadas que podem ser vistas em cerca de uma dúzia de objetos a uma distância de 250 vezes entre a Terra e Sol — uma observação que outros explicaram pela presença do suposto nono planeta. No outro estudo, que está sob revisão no Astrophysical Journal Letters, eles argumentam que, num intervalo de tempo suficientemente longo, essa gravidade coletiva também poderia explicar como certos objetos que possuem órbitas estranhas podem mudar à medida que dão a volta em torno do Sol, que também foi considerado como evidência para um planeta não conhecido.
A partir desse trabalho de Madigan e sua equipe, uma imagem alternativa da possível história do Sistema Solar está começando a emergir. Nos seus primórdios, Júpiter, Saturno, Urano e Netuno coalesceram em órbitas compactas e ordenadas, um tanto mais próximas da nossa estrela. Apenas posteriormente, por conta das interações gravitacionais, é que eles migraram para órbitas mais distantes. À época, esses mundos foram cercados por um enxame de pedaços de detritos remanescentes que nunca conseguiram formar um planeta — corpos glaciais que, por fim, os planetas gigantes jogaram para longe.
A maioria foi expulsa no que a Madigan chama de um “disco primordial esparso” para além do território onde hoje está Plutão. E ela sugere que esse disco pode abrigar muito mais massa do que outros pesquisadores geralmente consideraram. Os corpos glaciais, foram impulsionados para aquele anel em órbitas nada circulares, formando um sistema instável, semelhante a um pião que oscila precariamente. Esse sistema exerceu efeitos gravitacionais enquanto gradualmente se acomodava em uma configuração mais estável, com algumas órbitas compartilhando planos e orientações similares. Essa configuração iria, claro, basicamente imitar os efeitos gravitacionais que se esperariam se houvesse um planeta não descoberto e distante.
“O fato que a gravidade coletiva possa gerar todas as características que observamos significa que não é preciso postular nenhum elemento novo. Eu acho que a Navalha de Occam levaria a acreditar que é a solução mais simples” do que o nono planeta, Madigan diz.
Os astrofísicos do Instituto de Tecnologia da Califórnia, Mike Brown e Konstantin Batygin foram dois do mais ativos proponentes da hipótese do nono planeta desde que lançaram um estudo sensacional sobre o assunto no início de 2016. E eles também vêm aperfeiçoando seus argumentos para a existência do astro. A fim de coincidir com as últimas observações, os observadores argumentam que a massa do nono planeta deve ser cerca de 5 a 10 vezes a da Terra, e sua localização deve estar entre 400 e 800 vezes a distância da Terra a do Sol — um pouco menor e mais próximo do que eles primeiramente propuseram.
Batygin diz que está intrigado pela ideia de Madigan de anéis remotos de detritos. Mas ele acredita que Sistema Solar não parece ter esta configuração. “Se houvesse um anel tão longe [do nosso Sol], haveria o problema de mantê-lo estável no início do Sistema Solar, uma vez que o Sistema Solar se formou em um aglomerado de estrelas”, ele diz. “As perturbações causadas pela passagem estrelas próximas vão atrapalhar esse anel. Elas vão destruir sua integridade e dispersá-lo”.
Madigan resolve esse problema em suas novas simulações fazendo ajustes cuidadosos na passagem do tempo. se o disco disperso tivesse se organizado depois que o jovem Sistema Solar tivesse deixado seu berçário estelar, e os planetas gigantes já estivessem formados, ele poderia perdurar por eras. Fazer tais ajustes não é simples: modelar com precisão a gravidade coletiva de um disco de detritos requer localizar os movimentos e interações de milhares de partículas ou mais, flutuando por todos os lados, pelo equivalente de centenas de milhares de anos, em modelos de computador . Essa tarefa é muito mais penosa do que modelar os efeitos de um único planeta, diz Madigan. E, em parte, esse dificuldade é a razão pela qual ela e sua equipe parecem estar um passo atrás em relação aos defensores do nono planeta.
Até a presente data, a ideia de Madigan não conseguiu muita atenção na comunidade científica, em comparação com a hipótese do nono planeta. Mas, uma vez que as buscas por novos planetas feitas com telescópios não têm sido bem-sucedidas, é possível que o cenário mude. “Nós somos a minoria, mas estamos crescendo” ela diz. “No Sistema Solar, gravidade coletiva apenas não foi realmente estudada. O campo está apenas começando a decolar.”
Pelo menos outros dois grupos de pesquisa também começaram a investigar vários efeitos e dinâmicas gravitacionais como uma alternativa ao nono planeta. Eles envolvem tanto um disco de corpos rochosos quanto um número menor de corpos maiores, cujas influências gravitacionais, bilhões de anos atrás, também poderiam chacoalhar o início do Sistema Solar de modo a criar as órbitas peculiares de detritos que existiram para lá de Plutão.
“O interessante é que o que Madigan está fazendo é explicar de uma maneira radicalmente diferente o que está acontecendo com essas órbitas distantes”, diz Scott Tremaine, um astrofísico no Instituto de Estudos Avançados em Princeton, N.J. Porém, ele pontua o desafio da proposta de Madigan: sua hipótese de gravidade coletiva requer que o disco disperso possua tantos corpos glaciais que, juntos, somem uma alta massa.
A menos que, em algum ponto, o disco exiba uma massa combinada que seja igual a de 20 vezes a massa da Terra, e que esteja situado em uma localização que varie na ordem de algumas centenas de vezes a distância entre a Terra e o Sol, o disco careceria de massa para reconfigurar de forma suficiente o Sistema Solar exterior para refletir aquilo que pode ser visto atualmente nas observações. Pela observação das órbitas dos cometas, os astrônomos já obtiveram uma ideia difusa sobre o quanto de massa deveria existir lá longe. E um disco que seja grande o suficiente para fazer a ideia de Madigan funcionar recairia no limite daquilo que parece ser possível.
Na disputa para explicar as observações de agrupamentos anômalos nos rincões do Sistema Solar, existe, além da gravidade coletiva e do nono planeta, outro candidato: talvez ambas as hipóteses estejam erradas. Talvez, na realidade, não existe agrupamento nenhum. Certos vieses nos métodos dos astrônomos para procurar por pequenos corpos, e nas estatísticas utilizadas para estudá-los em grande número, podem levar a conclusões marcadamente diferentes — e algumas delas descartam como ilusória a ideia de que existam tais aglomerados.
“A Pesquisa sobre a Origem do Sistema Solar Exterior não trouxe evidências fortes para tais aglomerados”, diz Michele Bannister, uma astrônoma da Universidade de Canterbury na Nova Zelândia que faz parte da colaboração.
A estruturação da pesquisa permitiu que ela e seus colegas para localizassem corpos extremamente pouco luminosos, que não haviam sido vistos antes, e avaliar de modo mais sistemático se eles estão agrupados em alguma configuração esdrúxula. Os objetos distantes que eles encontraram poderiam, simplesmente, ser parte de uma população maior que está muito dispersa. Novas descobertas, feitas por membros do Levantamento da Energia Escura, chegaram a uma conclusão similar. Mas também eles descobriram apenas uma quantidade pequena de objetos.
O fato de lidarmos com estatísticas formadas a partir de poucos números, e de apenas termos observado apenas poucos padrões e estruturas pelo cosmos, na vasta escuridão, é o que torna tão difícil testar ideias sobre o Sistema Solar exterior, incluindo aí a busca por um planeta escondido ou por um disco de corpos dispersos. Tudo que observamos naquela região até agora é pouco brilhante, escuro e pequeno. Muitos estão tão distantes que levam um milênio para completar uma única volta ao redor do Sol, tornando muito difícil para os astrônomos determinarem, de forma eficiente, as propriedades de suas órbitas.
Além de explicar as observações que já foram feitas, Madigan e seus colegas começaram a fazer previsões. Se eles estiverem certos, deve existir um vão gigante nas órbitas dos objetos distantes: uma região quase inteiramente livre de detritos, situada a aproximadamente 50 vezes a distância da Terra ao Sol. Se o nono planeta existir de fato, esse vão gigante não deve existir . “Estou encantado em ver que conforme as profundidades do Sistema Solar são mapeadas, está sendo criado esse tipo de entusiasmo de teorias e inovação”, Bannister diz, se referindo tanto a gravidade coletiva quanto ao nono planeta.
Enquanto Madigan, Batygin e outros astrofísicos reúnem material adicional de evidências indiretas para sustentarem suas posições e procurar por novas previsões para testar, eles também estão esperando por observações dos telescópios mais sensíveis que serão lançados, na esperança de encerrar o debate. O Observatório Vera C. Rubin, que está sendo construído no topo de uma montanha deserta no norte do Chile, irá mapear pequenos objetos no Sistema Solar exterior com uma profundidade e precisão muito maior do que antes. E o telescópio verá sua “primeira luz” no começo do outono de 2021.
“Algo muito estranho está acontecendo no Sistema Solar exterior, e deve existir mais massa lá fora. Se [nosso disco hipotético] não for observado pelo Observatório Rubin, não está lá — e então é o nono planeta”, diz Madigan. “Tem que ser ou um ou outro”.
Ramim Skibba
Publicado em 06/05/2020