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Do iogurte aos mamutes

Nunca antes uma ferramenta biológica se disseminou tão rapidamente e com impacto tão profundo sobre o futuro da humanidade como o CRISPR

Como escreveu Carl Sagan em seu livro Os Dragões do Éden, “a curiosidade e a motivação para solucionar problemas são como características emocionais de nossa espécie”.

Por conta dessa paixão pelo novo, cientistas se interessaram, por exemplo, por estudar bactérias capazes de suportar concentrações de sal que “secariam” qualquer outra forma de vida.

Esse foi o caso de Francisco Mojica. Em 1989, o jovem estudante de doutorado identificou sequências repetidas de DNA em Haloferax mediterranei, uma bactéria halofílica (do grego: “amiga do sal”) isolada dos pântanos de Santa Pola na Espanha.

Desvendar por que existiriam sequências repetidas de DNA em bactérias tornou-se uma obsessão para o cientista espanhol. Nos primeiros 10 anos de sua carreira, Mojica identificou sequências repetidas de DNA em dezenas de espécies de bactérias, assim como vários pesquisadores em outras partes do mundo.

Com os avanços da bioinformática, foi possível perceber que esse DNA “misterioso” presente nas bactérias era idêntico a fragmentos de material genético de vírus nocivos a essas mesmas bactérias. O mais curioso foi perceber que micróbios eram resistentes justamente aos vírus cuja informação genética haviam incorporado!

Mojica batizou o conjunto das sequências repetidas de DNA de clustered regularly interspaced short palindromic repeats (em português: repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas), e o acrônimo CRISPR (pronuncia-se “crisper”) pegou.

Na mesma época, Gilles Vergnaud estudava armas biológicas em seu laboratório na França e identificou CRISPR em bactérias causadoras da peste negra e antraz. Ele propôs as sequências repetidas seriam como “memórias de agressões passadas” que ajudariam bactérias a se lembrar dos vírus com os quais tiveram contato prévio.

A confirmação de que CRISPR seria parte de um sistema imunitário adaptativo veio de Philippe Horvath também na França. Horvath demonstrou que bactérias responsáveis pela produção de iogurte incorporavam parte do material genético de vírus quando expostas a eles. Dessa maneira, ganhavam resistência valendo-se de um sistema de reconhecimento e combate a futuros ataques.

Nos anos seguintes, ficou evidente que o recém-descoberto mecanismo de defesa imunitária das bactérias, incluindo – além de CRISPR – a proteína Cas e uma variante de ácido ribonucleico chamada tracrRNA, funcionava como um sistema eficiente de edição de DNA.

Na Califórnia, Emanuelle Charpentier e Jennifer Doudna logo perceberam a importância de CRISPR para a chamada “engenharia genética”. Em 2012, usaram a metodologia para “cortar” DNA num tubo de ensaio, primeiro passo para a edição precisa do material genético.

Em 2013, Feng Zhang transferiu uma versão adaptada do que a evolução fez surgir nas bactérias para células humanas em laboratório. Com a ajuda de seus colegas de Massachusetts, Zhang gerou mutações e consertou genes como nunca antes na história da biologia.

Desde então, o tema esteve presente em mais de 6 mil publicações científicas. Milhares de laboratórios em mais de 80 países tem modificado o DNA de plantas, formigas, mosquitos, diversos mamíferos e células humanas através de CRISPR. Estados Unidos, China, Japão e Alemanha respondem por mais da metade do conhecimento acumulado sobre a metodologia.

Possibilidades de cura a curto prazo para doenças como herpes, HIV e muitos tipos de câncer nunca foram tão reais.

Por conta disso, há uma enorme batalha judicial em curso sobre a propriedade intelectual referente ao potencial biotecnológico do CRISPR. No presente momento, a decisão está favorável a Feng Zhang e seu instituto.

A aplicação eficiente de CRISPR para a eliminação dos chamados vírus endógenos porcinos (do inglês: porcine endogenous retroviruses ou PERVS) desfez a maior barreira sanitária para o transplante de órgãos de porcos em seres humanos.

Em 2015 na China, Junjiu Huang realizou pela primeira vez a edição de DNA por CRISPR em embriões humanos. Em 2017, um consórcio internacional liderado por Shoukhrat Mitalipov no Oregon corrigiu uma doença cardíaca em embriões humanos viáveis.

Como se não bastasse, George Church usou CRISPR para inserir um pequeno trecho do antigo filme do fotógrafo Eadweard J. Muybridge chamado The Gallop (com um cavalo em movimento) no interior de bactérias. Em outras palavras, o time de Harvard criou um gravador biológico, capaz de armazenar e propagar informação, seja ela qual for.

Para 2019, Church promete ressuscitar um animal extinto há 4 mil anos. Ou pelo menos parte dele, um híbrido de elefante asiático com fragmentos de material genético de mamute.

CRISPR também permite a transmissão de mutações desenhadas em laboratório para descendentes, através da manipulação do DNA de espermatozoides e óvulos. Controvérsias e debates éticos a parte, a possibilidade é de matar de inveja Charles Xavier e toda a legião de X-Men.

A principal lição dessa breve história de um dos maiores avanços da biologia de todos os tempos é que a geração de conhecimento será sempre fruto da motivação genuína daqueles que querem entender a vida e também do investimento constante em ciência. Recado para jovens curiosos e principalmente para a classe política de países que ignoram de onde virá o futuro da espécie humana ou um iogurte mais gostoso e nutritivo.

Stevens Rehen, Diretor de Pesquisa do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e professor da UFRJ. Dedica-se a pesquisas com células-tronco e divulgação científica. Esta é sua estreia na coluna Observatório e foi publicada originalmente na edição 177 da Scientific American Brasil, que está nas bancas.

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