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Dezenas de pessoas serão deliberadamente infectadas com COVID-19 em pesquisa

No Reino Unido, iniciativa buscará acelerar identificação de vacinas, mas críticos apontam risco de infectar alguém com doença para qual existem poucos tratamentos

O SarsCov-2. Foto de microscopia do NIAID

Pessoas jovens e saudáveis serão expostas intencionalmente ao vírus responsável pela COVID-19 como parte de um pioneiro estudo de desafio em humanos. O anúncio foi feito pelo governo do Reino Unido e pela empresa que realizará tais estudos no dia 20 de outubro. O experimento, que caso receba as aprovações finais éticas e regulatórias deve começar em janeiro, em um hospital de Londres, visa acelerar o desenvolvimento de vacinas que possam acabar com a pandemia. 

Esses estudos de desafio em humanos possuem o histórico de fornecer novas ideias para tratar doenças como malária e influenza. O ensaio no Reino Unido irá tentar identificar uma dose viável do vírus SARS-Cov-2 que possa ser utilizada em futuros ensaios da vacina. Mas a perspectiva de infectar as pessoas  deliberadamente, mesmo que elas possuam  um baixo risco de desenvolver um caso grave da doença,  com o SARS-CoV-2, que é um patógeno mortal que possui poucos tratamentos aprovados, é uma noa questão  médica e bioética. 

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Os organizadores do estudo de desafio para a COVID-19 argumentam que é possível fazê-lo  de maneira segura e ética, e que seu potencial para identificar rapidamente vacinas efetivas se impõe ao baixo risco enfrentado pelos participantes. Mas críticos levantaram questões sobre a segurança e o valor desses estudos. Eles lembram que, no curto prazo, devem ser divulgados os resultados de grandes estudos,  envolvendo dezenas de milhares de pessoas, que espera-se que tragam os dados  sobre diversas vacinas contra a COVID-19.  

“Infectar deliberadamente voluntários com um patógeno humano conhecido nunca é algo aceito de forma tranquila. Mas esses estudos trazem muitas informações sobre a doença”, disse Peter Openshaw, imunologista no Imperial College London e investigador no estudo, em uma declaração a imprensa. “É  vital que avancemos o mais rápido possível para obter vacinas efetivas e outros tratamentos para a COVID-19, e estudos de desafio possuem o potencial para acelerar e diminuir o risco de desenvolvimento do novo vírus e vacinas.”

Testes de dosagens

O estudo de desafio  será liderado por uma organização  de pesquisas clínicas comerciais chamada Open Orphan, e sua subsidiária hVIVO, que realiza esses ensaios em patógenos respiratórios. Além disso, será realizado em uma unidade com alto nível de isolamento no Hospital Royal Free, no norte de Londres, diz uma das chefes executivas da Open Orphan, Cathal Friel. 

A força tarefa para a vacina contra o COVID-19 do governo do Reino Unido concordou em pagar a empresa em até 10 milhões de euros para conduzirem o ensaio, com a possibilidade de contratarem a Open Orphan para realizar diversos outros testes para analisar diversas vacinas. A Agência Regulatória de Cuidados Médicos e Medicamentos do Reino Unido, MHRA, que regula os ensaios clínicos no Reino Unido, e um comitê de revisão ética, ainda precisa aprovar o ensaio inicial e seu projeto, e o mesmo para estudos futuros. 

O ensaio inicial planeja envolver um número estimado de participantes entre 30 e 50, diz Andrew Catchpole, virologista e líder científico do Open Orphan, que está liderando o trabalho. Apenas adultos saudáveis com idades entre 18 e 30 anos podem se engajar. 

O projeto  do estudo ainda não foi finalizado. Mas, provavelmente, um pequeno número de participantes receberá uma dose muito pequena da “cepa de desafio” do SARS-CoV-2, derivada de um vírus que está circulando atualmente e foi criado sob condições rigorosas. Se nenhum dos participantes, ou poucos deles, se mostrarem efetivamente  infectados, os pesquisadores vão pedir permissão a um conselho independente de monitoramento de segurança para expor os participantes a doses maiores. Esse processo será repetido até que os pesquisadores identifiquem uma dose que infecte a maioria dos expostos, diz Catchpole. 

Uma vez que se estabeleça qual a dose adequada, será possível requisitar à Open Orphan uma série de ensaios de desafios para testar diversas vacinas. Catchpole diz que o projeto detalhado desses ensaios, incluindo quais vacinas serão analisadas, ainda não foi determinado. Ele imagina que alguns participantes do ensaio irão receber uma injeção de placebo ao invés de uma vacina, mas também diz que ensaios paralelos,  que compartilhem duas ou mais vacinas, podem ser realizados. Outros estudos com vacinas que a empresa realiza geralmente envolvem de 40 a 50 voluntários para cada braço de ensaio, ele diz. 

Catchpole diz que sua equipe irá tomar todos os cuidados com os participantes no ensaio inicial que desenvolverem casos graves da doença. Os voluntários serão tratados com um medicamento antiviral, como o remdesivir, caso  a amostra nasal teste  positivo para o material genético do SARS-CoV-2. Além da idade e da saúde, os participantes serão testados para fatores de risco que podem estar associados com a gravidade da COVID-19. 

Selecionar participantes com um menor risco é o passo de segurança mais importante nesses ensaios, diz Matt Memoli, médico de doenças infecciosas e virologista no Instituto Nacional dos EUA de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID) em Bethesda, Maryland. “Uma vez que alguém deu o vírus para outra pessoa, tudo é possível”, ele diz. “Não se pode controlar, só se pode reagir”. 

Caso a Open Orphans siga com os ensaios de vacinas, ela projeta recrutar cerca de 500 participantes de uma vez, mas Friel diz que a empresa precisará fazer mais testes com  mais pessoas para identificar voluntários adequados. Um conselho de revisão ética irá determinar como compensar os participantes. A Open Orphan geralmente paga aos voluntários cerca de 4000 euros pelo seu tempo, diz Catchpole. 

Problemas éticos

Existe uma preocupação de que as pessoas participem pelo dinheiro sem pensar sobre os riscos, diz Nir Eyal, bioético na Universidade Rutgers em New Brunswick, Nova Jersey, que alegou que esses ensaios clínicos de desafio possam ocorrer com segurança e de maneira ética. Mas um curso online bem projetado, por exemplo, poderia garantir que os participantes entendessem o risco, ele diz. 

Assegurar  que os participantes entendam as limitações dos ensaios de desafio também é importante, diz Seema Shah, bioética no Hospital da Criança Lurie e da Universidade Northwestern em Chicago, Illinois. Com os ensaios de fase III de diversas vacinas para a COVID-19 em desenvolvimento, ela acredita que é improvável que os ensaios de desafio ultrapassem o desenvolvimento dessas primeiras vacinas. Ao invés disso, seus pagamentos poderiam ajudar a testar vacinas de próximas gerações ou pavimentar o caminho para novas ideias sobre a doença. Nesse contexto, diz Shah, “fica um pouco difícil justificá-los, e precisamos observar de perto os riscos”. 

Meagan Deming, cientista de vacina e virologista na Escola de Medicina da Universidade de Maryland em Baltimore, vê os ensaios de desafios como mais apropriados para o estudar aspectos básicos da infecção por SARS-CoV-2 — como o potencial para a reinfecção ou como exposições anteriores a outras coronaviroses que causam resfriados influenciam na suscetibilidade a COVID-19 — do que examinar vacinas. Como tais ensaios provavelmente incluirão pessoas jovens e saudáveis, eles podem não revelar muito sobre como as vacinas podem proteger que está no grupo de risco, como pessoas mais velhas ou aquelas com condições como diabetes, diz Deming. “Há motivos  para não termos muitas vacinas aprovadas por testes de desafio, pois eles  não se aplicam a todos e porque queremos uma vacina que proteja quase todos”, ela diz. 

Ensaios de Fase III podem não oferecer evidências claras sobre o funcionamento de vacinas em pessoas mais velhas, pois poucas participam desses ensaios, diz Peter Smith, epidemiologista na Escola de Londres de Higiene e Medicina Tropical, que esteve envolvido nos ensaios de desafios. Os pesquisadores provavelmente precisarão determinar a efetividade provável da vacina em pessoas mais velhas, a partir do modo  como seu sistema imunológico responde as vacinas contra COVID-19, antes de expô-las ao vírus. E, em comparação com os ensaios de campo, os estudos de desafios são melhores em identificar os tipos de resposta imunológica que preveem se uma vacina provavelmente funcionará ou não, acrescenta Memoli. 

 Outros ensaios

O Reino Unido não é o único país que investiga os ensaios de desafio para a COVID-19. O governo da Bélgica comprometeu 20 milhões de euros para que unidades hospedassem ensaios de desafio, potencialmente envolvendo a COVID-19. A NIAID está financiando o desenvolvimento de duas cepas de desafios da SARS-CoV-2 em um laboratório na Universidade do Estado do Colorado, em Fort Collins, e uma equipe liderada por Memoli também está pavimentando o trabalho para tais ensaios. Em uma declaração, a NIAID disse que aguardava dados dos estudos de fase III antes de tomar decisões a respeito dos ensaios de desafio para COVID-19. 

Os organizadores dos ensaios argumentam que as consequências de atrasá-los devem ser levadas em consideração, junto com o risco de seguir com eles. Por exemplo, Eyal e os economistas Pedro Rosa Dias e Ara Darzi no Imperial College London calcularam que acelerar o desenvolvimento das vacinas da COVID-19 em um mês iria evitar a perda de 720 mil anos de vida e prevenir 40 milhões de anos em pobreza, a maioria em países de baixa renda. 

Mas Deming acredita que estudos de desafio devem esperar até que seu valor seja esclarecido e os riscos mitigados, por exemplo, através do uso de  mais terapias potentes. “Nós não sabemos o suficiente ainda sobre essa doença para dizer a essa pessoa: você não irá morrer”, ela diz. “Nós aprendemos muito nos últimos nove meses. Em um ano, conseguiremos fazer isso com segurança.”

Ewen Callaway

Nature magazine

Publicado em 26/10/2020

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