Costa Rica, Brasil e Argentina pesquisam uso de anticorpos de cavalos contra COVID-19
O desenvolvimento de centenas de vacinas e terapias para a COVID-19 não está sendo buscado apenas em cidades como São Francisco, Boston ou Washington. Tendo como ponto de partida o aprendizado de décadas de produção de antídotos para veneno de cobras, cientistas, veterinários e técnicos em um instituto técnico e científico na Costa Rica têm trabalhado sem parar nos últimos meses para produzir uma fórmula terapêutica a partir de anticorpos de cavalos contra a SARS-CoV-2, o coronavírus que causa a COVID-19. Esforços similares estão ocorrendo no Brasil e na Argentina, para ajudar esses países a combater a doença enquanto não chega uma vacina efetiva.
No fim de março, após o primeiro diagnóstico de COVID-19 na Costa Rica, Román Macaya — um bioquímico e especialista em saúde pública que lidera o Fundo de Securidade Social da Costa Rica, que comanda as clínicas públicas e os hospitais da nação — chamou a comunidade científica para se unirem no combate à pandemia nascente. “Nossa resposta à COVID-19 não poderia apenas ser uma resposta do sistema de saúde”, disse Macaya. “Teria de ser uma resposta científica também”.
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Em seu apelo, ele escolheu os especialistas de antídotos do Instituto Clodomiro Picado da Universidade da Costa Rica, que é nomeado em homenagem a um renomado cientista da Costa Rica. “No dia seguinte, nós recebemos uma carta do Henning Jensen, reitor da Universidade da Costa Rica, dizendo “estamos dentro. Vamos nos reunir e trabalhar nisso”, relembra Macaya.
O objetivo da equipe era reunir a tecnologia e a experiência que o Instituto Clodomiro Picado adquiriu em seu trabalho utilizando anticorpos de cavalos para fabricar antídotos para mordida de cobras durante as últimas cinco décadas. A cada ano, os antídotos com anticorpos purificados de equinos produzidos no instituto salvam mais de 500 pessoas na Costa Rica, e milhares mais em outros países ao redor do mundo.
O Instituto Clodomiro Picado possui mais de 100 cavalos que desenvolveram uma forte imunidade contra veneno de cobras após serem inoculadas com pequenas quantidades de toxinas durante um período de semanas a meses. Além de seu uso para antídotos para cobras, escorpiões e aranhas, durante décadas, as preparações farmacêuticas de anticorpos equinos têm sido empregadas no mundo inteiro como o tratamento para raiva, botulismo e difteria. Ensaios clínicos dos antídotos do instituto, conduzidos na Colômbia, na Nigéria e em Papua-Nova Guiné, mostraram que o uso desses anticorpos em humanos é seguro, e raramente gera reações adversas graves.
Mais recentemente, a terapia de imunoglobulina equina apareceu como um tratamento potencial para uma série de viroses que possuem opções terapêuticas limitadas. Dentre elas estão as viroses aviárias H5N1 e H7N9 e o coronavírus que causa a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS). “Tudo isso inspirou diversos grupos de pesquisa a encontrar maneiras de produzir imunoglobulinas equinas seguras e efetivas contra a COVID-19”, explica Fan Hui Wen, pesquisadora e diretora de projeto no Instituto Butantã no Brasil, que também possui grande experiência na produção de tais anticorpos. Ela não estava envolvida na pesquisa no Instituto Clodomiro Picado.
O projeto costa-riquenho possui um ar de familiaridade. “A ideia por trás da terapia de anticorpos para pacientes com COVID-19 é similar aquela de tratamento de pacientes sofrendo com veneno de cobras”, diz Alberto Alape Girón, microbiólogo e pesquisador principal do projeto COVID-19 no Instituto Clodomiro Picado. “Nós queremos gerar anticorpos específicos contra estrutura viral em cavalos, purificar os anticorpos e dá-los aos pacientes que estão começando a combater a infecção, mas cujos sistemas imunológicos ainda não produzem anticorpos o suficiente para limpar as partículas virais”, ele acrescenta.
Cidadãos que queriam ajudar a pesquisa doaram seis cavalos ao instituto. Os animais foram inoculados com proteínas construídas do vírus SARS-CoV-2. Três dos cavalos receberam apenas S1, uma porção da proteína que produz as coroas que se sobressaem na superfície do patógeno. Os outros três animais receberam uma combinação das quatro proteínas do coronavírus, incluindo a S1.
Após quatro rodadas de inoculação administradas a cada duas semanas, os cavalos produziram o nível desejado de anticorpos. Nesse ponto, seu sangue foi extraído, e as células vermelhas do sangue foram separadas do plasma e retornaram aos cavalos. “O plasma é uma mistura muito complexa que possui centenas de proteínas”, diz Alape-Girón. “Os anticorpos são uma das proteínas mais abundantes, mas existem outras”. A nível farmacêutico, os pesquisadores utilizaram uma tecnologia desenvolvida pelo Instituto Clodomiro Picado para separadas os anticorpos de outras proteínas no plasma, e então purificá-los para obter a formulação terapêutica para os testes em humanos.
No total, eles produziram 1000 vias de 10 milímetros de anticorpos equinos purificados. Metade deles possuíam anticorpos contra a proteína S1, e a outra metade continha as quatro proteínas presentes no coronavírus. “Apenas uma dose de 10 mL possui cerca de 80 vezes a quantidade de anticorpos que você encontra em 800 mL de plasma convalescente, que é o plasma doado por alguém que superou uma infecção de SARS-CoV-2”, diz Alape-Girón.
Para testar a eficácia dos anticorpos equinos, algumas doses foram enviadas para o Centro Nacional para Biodefesa e Doenças Infecciosas (NCBID) da Universidade George Mason. “Nós queríamos determinar se o vírus SARS-CoV-2 poderia ser neutralizado por anticorpos produzido por cavalos”, diz Charles Bailey, professor de biologia e diretor executivo do NCBID. “O teste que nós realizamos nas amostras é chamado de teste de neutralização de redução de placa, PRNT. Nós expomos os anticorpos produzidos em cavalos, em diversas diluições, ao vírus SARS-CoV-2, crescendo em uma cultura celular. O vírus foi neutralizado”. Espera-se que os resultados da pesquisa sejam publicados no futuro próximo.
O próximo passo — testar os anticorpos equinos em pacientes com COVID-19 — terá início com um ensaio clínico acelerado ainda este mês. A segurança dos anticorpos e sua eficácia serão examinados em um grupo de 26 pacientes com COVID-19 que foram hospitalizados mas não foram para uma unidade de tratamento intensivo. Espera-se que os resultados saiam no fim de setembro. Se forem positivos, a pesquisa então seguirá para um ensaio maior, com centenas de pacientes. Se os anticorpos equinos se mostrarem efetivos, o Instituto Clodomiro Picado poderia imunizar mais cavalos e assim obter uma produção suficiente para cobrir a demanda da Costa Rica, e provavelmente de seus vizinhos também. O país recebeu 500 mil dólares no dia 13 de agosto do Banco da América Central para Integração Econômica para seguir com sua pesquisa.
Diferentemente dos anticorpos monoclonais, que estão sendo desenvolvidos para visar uma região molecular específica, ou epítopo, na superfície do SARS-CoV-2 para causar uma resposta imunológica, os anticorpos policlonais dos cavalos contra o SARS-CoV-2 reconhecem diferentes epítopos. Sua baixa especificidade resulta em um processo mais barato de produção. Alape-Girón estima que uma dose de anticorpos equinos custará 100 dólares para ser produzida, enquanto um tratamento com anticorpos monoclonais poderiam ser 10 vezes mais caros.
“Não é a tecnologia mais avançada”, diz Macaya. “Não é um anticorpo monoclonal, mas permite que a gente se beneficie da velocidade, e é uma abordagem muito pragmática”. Além disso, “Se houver um anticorpo monoclonal, seria necessário uma fábrica muito grande para produzi-los”, ele acrescenta. “Aqui, os cavalos são as fábricas, pelo menos na parte de produção. Então vem a parte da purificação, que é um processo industrial, mas o Instituto Clodomiro Picado já possui tal infraestrutura”.
Fan diz que essa descrição é similar a sua experiência no Instituto Butantã no Brasil. “Produtos de anticorpos policlonais podem ser produzidos em grandes quantidades, e com um bom custo-benefício, para responder a situações pandêmicas em grandes escalas, com a infecção por SARS-CoV-2”, ela diz.
Atualmente, o Instituto Butantã está preparando cavalos para serem imunizados com porções do vírus SARS-CoV-2 inativados, que foram isolados, criados em cultura e purificados, utilizando sua especialidade na produção de vacinas para o vírus influenza. Mesmo que os protocolos de desenvolvimento se diferenciam nos institutos brasileiro e costa-riquenho, Fan prevê que seus anticorpos “terão eficácia e segurança equivalentes no tratamento de pacientes com COVID-19”.
Mais ao Sul do continente, os cientistas na Argentina também estão desenvolvendo uma terapia potencial para pacientes com COVID-19 utilizando anticorpos equinos, enquanto outros pesquisadores ao redor do mundo estão explorando anticorpos contra SARS-CoV-2 de lhamas e vacas. O objetivo por trás de todos esses projetos é o mesmo: salvar vidas enquanto espera-se que uma vacina esteja disponível.
A Costa Rica possui mais de 28 mil casos de COVID-19. “Nós temos mais de 100 pacientes na UTI”, diz Macaya. “E nossa capacidade de UTIs, como a de qualquer país, é limitada”. Sua esperança é que os anticorpos de equinos se provem ser “uma ferramenta valiosa para que nosso sistema de saúde não entre em colapso a nível das UTIs e, obviamente, prevenir mortes. Esse é o principal objetivo”.
Debbie Ponchner
Publicado em 19/08/2020