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Comparar mortes por COVID-19 a mortes por gripe é como comparar maçãs com laranjas

Mortes por gripe são produto de estimativas anuais, e as baixas por COVID-19 são registradas caso a caso

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 No fim de fevereiro, quando o mercado de ações estava começando a cair devido ao  medo do coronavírus, o presidente Donald Trump fez um pronunciamento na Casa Branca para assegurar às pessoas que havia poucas chances de que o vírus causasse rupturas significativas nos Estados Unidos. 

“Eu quero que você entenda algo que me chocou quando eu vi”, ele disse. “A gripe, no nosso país, mata de 25 mil a 69 mil  pessoas por ano. Isso foi chocante para mim”.

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Seu argumento  era sugerir que o coronavírus não era pior que uma gripe, cujas  taxas de mortalidades não são notadas pela maioria de nós. 

No começo de abril, conforme as medidas de distanciamento social começaram a ter sucesso em achatar a curva em algumas partes do país, um importante modelo de previsão  revisou o número de possíveis mortes  por coronavírus nos EUA, estimando alcançarem  cerca de 60.400 até o verão. Algumas pessoas novamente começam a fazer comparações com a gripe, argumentando que, se no fim das contas os efeitos da pandemia não forem piores dos que os causados por uma temporada intensa de gripe, o país deveria ser reaberto para as atividades profissionais. (Em 22 de abril, a previsão do modelo cresceu para 67.641 mortes.)

Mas esses argumentos, assim como os comentários feitos pelo presidente, são baseados em um entendimento falho de como as mortes por gripe são contabilizadas, o que pode nos levar a uma visão distorcida de como elas podem ser comparadas com as vítimas do coronavírus.  

Quando relatos sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2 começaram a circular no começo desse ano, e surgiram indagações sobre a doença que ele causa, a COVID-19, e sua comparação com a gripe, ocorreu para mim que, em quatro anos de residência em medicina emergencial e cerca de três anos e meio como médico atendente,  quase nunca vi ninguém morrer de gripe. Eu só consegui lembrar de um caso trágico na pediatria. 

Contudo, segundo os  números do Centre for Disease Control (CDC), eu deveria ter visto muitos, muitos mais casos. Em 2018, cerca de 46 mil  americanos morreram por overdose de opióides. Cerca de 36.500 morreram em acidentes de trânsito. Aproximadamente 40 mil pessoas morreram por violência com armas. Eu vejo essas mortes o tempo inteiro. Será que só eu estava notando essa discrepância? 

Eu decidi contatar colegas pelo país que trabalham em outras unidades de emergência e em unidades de tratamento intensivo a perguntarem uma simples pergunta: quantos pacientes eles se lembram de terem visto falecer por gripe? A maioria dos médicos que perguntei não conseguiam lembrar de um único caso ao longo de suas carreiras. Alguns dizem que relembram alguns. Todos eles pareceram ter a mesma ideia que eu já havia tido: Por muito tempo, nós aceitamos cegamente uma estatística que não combina com a nossa experiência clínica.

Os 25 mil a 69 mil que Trump cita não representam a contagem anual de mortes por gripe; são estimativas que o CDC produz multiplicando o número de mortes por gripe reportados por vários coeficientes produzidos através de complicados algoritmos. Esses coeficientes são baseados em suposições sobre  quantos casos, hospitalizações e óbitos eles acreditam não terem sido reportados. Nas últimas seis temporadas de gripe, o número reportado pelo CDC de mortes efetivas por gripe  isso é, contabilizando mortes por gripe da maneira que estamos atualmente contabilizando mortes pelo coronavírus — variou de 3.448 a 15.620, que é muito menor que os números comumente repetidos por autoridades públicas e mesmo por especialistas em saúde pública. 

Há certa lógica por trás dos métodos da CDC. Existem, claro, algumas mortes por gripe que passam despercebidas, porque nem todo mundo que contrai gripe faz um teste de gripe. Mas existem poucos dados para apoiar a suposição da CDC que o número de pessoas que morreram por gripe a cada ano seja, em média, seis vezes maior do que o número de mortes confirmadas por essa doença. Na realidade, na publicação final, os números de gripe da CDC também incluem mortes por pneumonia. 

O CDC deveria imediatamente mudar a forma como reporta mortes por gripe. Enquanto no passado era justificável o erro no sentido de superestimar as mortes por gripe, de maneira a encorajar a vacinação e a boa higiene, neste momento os relatórios  do CDC sobre mortes por gripe são perigosamente enganosos para o público, e mesmo para autoridades públicas, quanto à comparação entre essas duas viroses. Se nós  concluirmos erradamente que a COVID-19 é “apenas outra gripe”, nós podemos abandonar  estratégias que parecem estar funcionando para reduzir a velocidade de contágio do vírus. 

A pergunta permanece. Pode-se, com rigor,  comparar  o número de vítimas por  gripe com o número de vítimas da  pandemia de coronavírus?

Para  isso, é preciso comparar mortes contabilizadas com mortes contabilizadas, não mortes contabilizadas com estatísticas infladas estimadas. Se nós compararmos, por exemplo, o número de pessoas que morreram nos Estados Unidos por COVID-19 na segunda semana inteira de abril ao número de pessoas que morreram de influenza durante a pior semana das últimas sete temporadas de gripe (tal como reportado pelo CDC), nós descobrimos que o novo coronavírus matou entre 9,5 e 44 vezes mais do que a gripe sazonal. Em outras palavras, o coronavírus não é nada como a gripe: É muito, muito pior. 

Dessa perspectiva, os dados sobre coronavírus e gripe na realidade combinam com a realidade vivida na pandemia de coronavírus: os hospitais situados nas regiões mais críticas operando no limite e, na cidade de Nova York em especial, mortos em tamanha quantidade que os corpos são estocados em caminhões de refrigeradores. Nós nunca vimos algo assim.  

Nesse pronunciamento feito no fim de fevereiro, Trump minimizou a probabilidade que o vírus tinha de se espalhar significantemente nos Estados Unidos e que essas medidas extremas como fechar escolas seriam necessárias, dizendo que “temos a situação sob controle”, e evocando  novamente a gripe. 

“Sessenta e nove mil pessoas morrem todo ano — de 26 mil a 69 mil — devido à gripe”, ele disse. “Pensem sobre isso. É inacreditável”. 

Nós agora sabemos que Trump estava desastrosamente errado sobre a ameaça que o coronavírus representava para os  Estados Unidos. Mas quando ele disse que os números de mortes por gripe são inacreditáveis, ele estava certíssimo.  

As opiniões expressas neste artigo são somente do autor e não refletem as visões e opiniões do Brigham and Women’s Hospital ou Harvard Medical School.

Jeremy Samuel Faust

Publicado em 04/05/2020

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