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Cientistas revelam a primeira imagem de Sagittarius A*, o buraco negro no coração da Via Láctea

A imagem histórica de Sagittarius A* é a culminação de décadas de trabalho astronômico – e um passo crucial para um novo entendimento de buracos negros, gravidade e do espaço-tempo.
Sagittarius A*.

A primeira imagem de Sagittarius A*, o buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea, capturada pelo Telescópio Horizonte de Eventos. Crédito: Colaboração EHT

O mistério no coração da Via Láctea finalmente foi desvendado. Nessa manhã, em coletivas de imprensa simultâneas ao redor do mundo, os astrônomos do Telescópio Horizonte de Eventos (EHT, em inglês) revelaram a primeira imagem de Sagittarius A*, o buraco negro supermassivo no centro da Via Láctea. Não é a primeira imagem de um buraco negro fornecida por essa colaboração – esta foi a icônica imagem de M87*, revelada pelo grupo em 10 de abril de 2019. Mas esta é a que eles mais buscavam. Sagittarius A* é o buraco negro supermassivo no nosso quintal, o ponto estacionário ao redor do qual nossa galáxia revolve. 

Cientistas há muito acreditam que um buraco negro supermassivo escondido nas profundezas da caótica região central de nossa galáxia era a única explicação possível para os fenômenos bizarros que ali acontecem – como estrelas gigantes sendo catapultadas ao redor de algo invisível no espaço a uma fração significativa da velocidade da luz. Por exemplo, quando os astrônomos Reinhard Genzel e Andrea Ghez dividiram uma parte do Prêmio Nobel de Física de 2020 pelo seu trabalho no Sagittarius A*, sua menção especificava que eles foram premiados pela “descoberta de um objeto compacto supermassivo no centro de nossa galáxia”, não pela revelação de um “buraco negro”. O tempo em que essa precaução era necessária se esgotou. 

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No Clube Nacional da Imprensa em Washington, D.C. (EUA), nesta manhã, Feryal Özel, professor de astronomia e física na Universidade do Arizona (EUA) e membro do Conselho Científico do EHT, introduziu a imagem, um anel escuro rodeado por três nós brilhantes de gás aquecido a trilhões de graus. “Eu conheci [Sagittarius A*] há 20 anos e amei-o e tentei entendê-lo desde então”, disse Özel. “Mas, até agora, não tínhamos a imagem direta.”

Buracos negros prendem tudo que cai neles, incluindo luz, portano, eles são, em um sentido bastante literal, invisíveis. Mas eles distorcem o espaço-tempo ao seu redor de forma tão severa que, quando são iluminados por feixes brilhantes de matéria sendo engolida e dilacerada no seu campo gravitacional, eles produzem uma “sombra”. A sombra é cerca de duas vezes e meia maior que o horizonte de eventos de um buraco negro: sua fronteira e característica central, o limite no espaço-tempo pelo qual nada que passa poderá retornar. 

O EHT capturou imagens dessa sombra usando uma técnica chamada interferometria de longa linha de base (VLBI, em inglês), que combina observatórios de rádio em múltiplos continentes para formar um telescópio virtual do tamanho da Terra, o instrumento com a mais alta resolução em toda a astronomia. Em abril de 2017, a colaboração EHT passou diversas noites apontando esse instrumento virtual na direção do Sagittarius A* e outros buracos negros supermassivos. Já vimos o produto final desses esforços no M87*. A equipe também capturou dados brutos para a imagem do Sagittarius A* na mesma campanha, mas converter essas observações em uma imagem levou muito mais tempo. 

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Isso pois Sagittarius A* está em constante mudança. M87*, o buraco negro no coração da galáxia Messier 87, ou M87, é tão grande que a matéria girando ao seu redor leva muitas horas para completar uma órbita. Na prática, isso significa que é possível olhar para ele por muito tempo, e ele quase não mudará. Sagittarius A* é mais de mil vezes menos massivo, portanto ele muda cerca de mil vezes mais rápido, conforme a matéria se move em órbita mais estreitas e velozes ao redor do buraco negro.

Katie Bouman, cientista computacional e astrônoma no Instituto de Tecnologia da Califórnia, e colíder da força-tarefa de imageamento do EHT, afirma que matéria orbita Sagittarius A* tão rapidamente que ele muda de “minuto a minuto”. Imagine tirar uma foto de time-lapse de uma bala – não é fácil. É por isso que extrair uma imagem clara do Sagittarius A* dos dados coletados nas observações de 2017 foi um projeto de vários anos. 

Se a natureza dinâmica do Sagittarius A* o tornou difícil de ser observado, ela também serve de um laboratório interessante para futuros estudos de buracos negros e da teoria da relatividade de Einstein, sua teoria glorificada teoria da gravidade. Através de décadas de estudo com todos os tipos de telescópios, astrônomos já conhecem as medidas básicas de Sagittarius A* (sua massa, diâmetro e distância da Terra) com grande precisão. Agora, enfim, eles obtiveram a habilidade de vê-lo evoluir – assistir enquanto se alimenta de feixes de matéria cintilantes – em tempo real. 

Levantando o véu de muitas camadas de Sagittarius A*

Cientistas começaram a suspeitar que um buraco negro existia no coração da galáxia no começo dos anos 1960, pouco depois da descoberta de núcleos ativos de galáxis – regiões extremamente brilhantes no centro de algumas galáxias iluminadas por buracos negros supermassivos quando devoram matéria vorazmente. Da nossa perspectiva aqui da Terra, núcleos ativos de galáxias são algo do passado – nós apenas os vemos no Universo distante. Aonde eles foram? Em 1969, o astrofísico inglês Donald Lynden-Bell afirmou que eles não foram a lugar algum. Em vez disso, disse ele, eles apenas estavam hibernando depois de grandes refeições – buracos negros supermassivos dormentes, ele previu, estão adormecidos ao nosso redor nos corações de galáxias espirais, incluindo a nossa.

Já em 1974, os astrônomos estadunidenses Bruce Balick e Robert Brown apontaram radiotelescópios em Green Bank (Virgínia Ocidental, EUA) para o centro da Via Láctea, e descobriram uma leve mancha, que eles suspeitaram ser o buraco negro central de nossa galáxia. Eles encontraram a mancha em uma faixa do céu conhecida como Sagittarius A. Radiação dessa nova fonte estava iluminando – ou “excitando” – as nuvens de hidrogênio ao redor. Brown pegou emprestada a nomenclatura da física atômica, na qual átomos excitados são marcados com um asterisco, e nomeou a nova mancha de Sagittarius A*.

Durante as duas décadas seguintes, radioastrônomos continuaram a melhorar gradualmente sua visão de Sagittarius A*, mas eles estavam limitados pela falta de telescópios adequados, tecnologia relativamente primitiva (bobinas magnéticas de gravação, por exemplo) e a dificuldade inerente de olhar para o centro da galáxia

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Sagittarius A* está escondido por um véu de muitos níveis. A primeira camada é o plano galáctico – 26 mil anos-luz de gás e poeira que bloqueia a luz visível. Ondas de rádio navegam desimpedidas através do plano galáctico, mas elas são obscurecidas pela segunda camada do véu – a tela de dispersão, um trecho turbulento do espaço onde variações de densidade no meio interestelar desviam as ondas de rádio levemente para fora de seu curso. A última camada encobrindo Sagittarius A* é a matéria obliterada rodeando o próprio buraco negro. Atravessar essa barreira é quase como arrancar as camadas de uma cebola. As camadas mais externas emitem comprimentos de ondas de luz mais longos, então fazer a VLBI funcionar com comprimentos de onda mas curtos permitiria se aproximar do horizonte de eventos do buraco negro. Isso, no entanto, foi um grande desafio tecnológico. 

Astrônomos usando outras técnicas além da VLBI inicialmente tiveram mais sucesso, lentamente acumulando evidências indiretas que a “mancha” de Sagittarius A* era na verdade um buraco negro supermassivo voraz. Nos anos 1980, o físico Charles Townes e seus colegas mostraram que nuvens de gás no centro da galáxia estavam se movendo de maneiras que só faziam sentido se elas estivessem sob a influência de alguma massa gravitacional enorme e até então invisível. E, nos anos 1990, Ghez e Genzel independentemente começaram a rastrear as órbitas de estrelas azuis gigantes no centro da galáxia, mapeando seus movimentos ao redor de um ponto escondido. 

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No meio tempo, as condições de trabalho dos radioastrônomos melhoraram. No fim dos anos 1990 e começo dos anos 2000, uma nova geração de radiotelescópios de alta frequência começaram seus trabalhos – telescópios que, se melhorados com diversos equipamentos sob medida, poderiam participar de observações VLBI nas frequências de microondas nas quais acreditava-se que a borda da sombra de Sagittarius A* brilhava. Ao mesmo tempo, a revolução computacional que levou a SSDs (solid state hard drives) e celulares aumentou vastamente a quantidade de dados que cada observatório na rede de radiotelescópios poderia capturar e processar. 

Em 200, um pequeno precursor para o EHT aproveitou dessas tendências e usei um trio de telescópios no Havaí, Califórnia e Novo México (EUA) para penetrar o véu rodeando Sagittarius A*. Eles estavam longe de produzir uma imagem, mas viram algo

Cientistas sabiam há algum tempo que um buraco negro deveria, em algumas circunstâncias, produzir sombras visíveis. Em 1973, o físico James Bardeen previu que um buraco negro na frente de um fundo brilhante deve mostrar sua silhueta, ainda que ele tenha decidido que “parece não haver nenhuma esperança de observar esse efeito”. E, em 2000, os astrofísicos Heino Falcke, Fulvio Melia e Eric Agol mostraram que um radiotelescópio do tamanho da Terra capaz de capturar microondas deveria ser capaz de ver a sombra de Sagittarius A* contra o brilho de seu anel de matéria obliterada. 

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Meia década mais tarde, uma dúzia de astrônomos e astrofísicos trabalhando nesse canto obscuro da astronomia concordaram no objetivo formal de construir um telescópio virtual de escala planetária para observar essa sombra. O primeiro encontro oficial para o projeto ocorreu em janeiro de 2012, e nesse momento nasceu o EHT. 

Cinco anos mais tarde, depois de crescer para uma colaboração de mais de 200 cientistas com oito observatórios participantes ao redor do globo, a equipe fez sua primeira tentativa realista de ver a sombra de Sagittarius A*. Ao longo de 10 dias em abril de 2017, telescópios na América do Norte, América do Sul, Havaí, Europa e Antártica coletivamente deram um zoom no centro da galáxia e em outros buracos negros, coletando 65 horas de dados em 1.024 discos rígidos de oito terabytes, que foram enviados para bancos de supercomputadores em Massachusetts e na Alemanha para correlação. Cinco anos depois disso, os exaltados pesquisadores do EHT mostraram ao mundo que seu primeiro experimento funcionou. “Estamos trabalhando nisso por tanto tempo que, de vez em quando, temos que nos dar um beliscão”, afirmou Bouman nesta manhã. “Esse é o buraco negro no centro da nossa galáxia!”

Seth Fletcher

Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 12/05/2022; aqui em 19/05/2022.

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