Cachorros conseguem distinguir a linguagem humana de falas sem sentido — e diferenciar entre espanhol e húngaro
Muitos animais conseguem entender padrões auditivos na fala humana — mas os cachorros são particularmente bons em fazer isso.
Não é nenhum segredo que cachorros são bastante especiais quando se discute seu interesse nos humanos e na maneira como eles interagem conosco. Mas o quanto eles entendem das sutilezas da linguagem saindo de nossas bocas? Eles as entendem de forma distinta, como linguagem, diferenciando-a de outros sons chegando em suas orelhas? Eles estão processando o que estamos dizendo mesmo quando não pronunciamos suas palavras favoritas? Um novo estudo publicado no periódico NeuroImage sugere que sim.
Quase quatro anos atrás, os neurocientistas Laura Cuaya e Raúl Hernández-Pérez se mudaram do México para Budapeste com seus dois border collies e um gato. Quando eles perceberam o quão diferente era estar cercado de pessoas que falam húngaro ao invés de espanhol, sua língua nativa, eles se perguntaram se seus companheiros caninos também haviam notado.
Cuaya e Hernández-Pérez trabalham em um grupo de pesquisa na Universidade Eötvös Lórand, na Hungria, que estuda a evolução da percepção de linguagem em mamíferos, incluindo cachorros, com ferramentas como o imageamento de ressonância magnética funcional (fMRI, na na sigla em inglês), que monitora mudanças no fluxo sanguíneo do cérebro. Mais sangue fluindo para uma região específica do cérebro significa mais ativação — permitindo que os pesquisadores notem mudanças na atividade cerebral como resposta a certos estímulos.
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Em 2016, o grupo da universidade mostrou que cachorros ativam vias neurais diferentes para reconhecer o significado de palavras do que as que ativam para perceber mudanças em entonação emocional. Mas ninguém sabe se animais podem distinguir linguagem humana real de sons ligeiramente diferentes, que não constituem uma sequência de palavras. E tampouco sabiam se um cachorro poderia diferenciar quando uma pessoa estava falando uma língua diferente.
Os pesquisadores recrutaram 18 cachorros de famílias, incluindo os border collies, Kun-Kun e Odín, que vieram do México. Os cachorros estavam familiarizados ou com húngaro ou com espanhol, mas não com ambos — e eles haviam sido previamente treinados para deixar-se em uma máquina de fMRI sem se mover. Através de um par de fones de ouvido de cancelamento de ruído, os cachorros ouviram passagens do livro “O pequeno príncipe”, de Antoine de Saint-Exupéry, em espanhol ou húngaro.
Os pesquisadores observaram as mesmas áreas do cérebro “acenderem” a partir dos scans de fMRI, mas com diferentes padrões de ativação, dependendo se os cachorros estavam ouvindo a história na sua língua nativa ou em uma nova — sugerindo que eles estavam processando neurologicamente as diferenças entre as duas línguas.
Em seguida, os pesquisadores tentaram testar se os cachorros estavam respondendo a características específicas, intrínsecas a cada língua. Será que os animais estavam reagindo a mudanças reais entre os padrões de fala — palavras em húngaro colocam ênfase na primeira sílaba, por exemplo — ou apenas respondendo a diferenças básicas nas assinaturas auditivas fundamentais entre as duas línguas — alterações em tom que ocorrem na pronúncia das vogais?
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Dessa forma, para testar isso, eles colocaram nos fones gravações nas quais as falas da narrativa haviam sido embaralhadas, resultando em uma linguagem que produzia sons semelhantes a húngaro ou espanhol. Novamente, a equipe observou diferentes padrões na atividade cerebral quando um cachorro ouvia linguagem humana real ao invés de falas sem sentido semelhantes a uma linguagem, ainda que os pesquisadores não saibam dizer se isso é evidência que cachorros podem reconhecer linguagem humana como uma linguagem propriamente dita (sons unidos de forma a fazer sentido para humanos comunicarem uns com os outros) — ou se seus cérebros estavam apenas respondendo aos sons mais naturais quando comparados com as falas sentido, que soavam estranhas.
Entretanto, não houve nenhuma mudança na atividade cerebral entre ouvir as falas sem sentido em espanhol ou húngaro, indicando que o cérebro dos caninos não estava apenas respondendo às características tonais diferentes.
No todo, o estudo mostra que os cérebros de cachorros podem detectar a diferença entre linguagem e sons semelhantes a uma linguagem, e podem até diferenciar entre línguas humanas. “Esta é a primeira vez que demonstramos que um cérebro não-humano pode distinguir linguagem,” afirma Cuaya, notando também que ainda que outros animais possam ser treinados para entender a diferença entre línguas humanas, os cachorros puderam fazer isso sem um treinamento explícito. “É um novo estudo de percepção de linguagem com cachorros muito interessante,” disse Holly Root-Gutteridge, cientista de comportamento animal da Universidade de Lincoln, na Inglaterra, que não estava envolvida com o trabalho.
“Muitas pessoas presumem que quando falamos, os cachorros estão ouvindo apenas ‘blá blá blá,’” disse Root-Gutteridge. Mas eles estão, na verdade, acompanhando nosso ritmo de fala e nossos tons quando falamos uma língua.
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Além disso, os resultados também possuem algumas implicações evolutivas interessantes. “Algo realmente interessante sobre os cachorros e humanos é que ambas as espécies são extremamente diferentes” em termos evolutivos, afirma Hernández-Pérez. “Mas há um certo ponto na evolução de humanos e cachorros no qual ambas as espécies foram expostas a ambientes sociais complexos.” E mesmo que existam diferenças biológicas e evolucionárias na estrutura cerebral, ambas as espécies evoluíram maneiras distintas de detectar mudanças nos padrões de fala humanos — embora experimentos futuros sejam necessários para analisar se cachorros possuem regiões do cérebro dedicadas a detectar mudanças nas falas humanas, aprimoradas ao longo de éons de tempo gasto com conosco, ou se sua habilidade representa um reconhecimento de padrões auditivos mais geral.
Cuaya aponta também que mesmo que muitos animais sejam capazes de reconhecer padrões auditivos, cachorros são únicos devido ao seu interesse persistente em humanos. “O que é maravilhoso sobre os cachorros é que eles querem cooperar,” afirma ela. “Eles querem nos entender.”
Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 06/01/2022.