Estudo que sugere que fusão de buracos negros gera emissão de radiação desperta controvérsia
Mais de quatro bilhões de anos atrás, um par de buracos negros se engajou em uma dança dramática. Enquanto o gás e a poeira circulavam ao seu redor, os dois rodopiavam cada vez mais próximos, enquanto orbitavam perto de um buraco negro supermassivo. Então, os dois buracos negros se fundiram gerando uma colisão tão poderosa que afetou o próprio espaço. Como resultado das ondas gravitacionais geradas nesse processo, que depois que chegaram até a Terra, o buraco negro resultante dessa fusão recuou como um foguete, aquecendo seu gás ao redor e gerando um feixe forte de luz que durou por semanas.
Esse foi o cenário é proposto por uma pesquisa publicada em 25 de junho na Physical Review Letters. O que os pesquisadores sabem com certeza é que, em 21 de maio de 2019, detectaram ondas gravitacionais emitidas por uma colisão de dois buracos negros. E, nas semanas seguintes, um estranho feixe de luz surgiu na mesma região do céu. Se o feixe veio de fato dos buracos negros, ele marca a primeira vez que os cientistas observaram a emissão de luz após uma fusão entre buracos negros.
++ LEIA MAIS
Na corrida para voltar a Lua, astrônomos querem leis para assegurar espaço para pesquisa
Regularidade de pulsos de ondas de rádio de altíssima energia vindos do espaço intriga astrônomos
“Eu estava maravilhado”, diz Jillian Bellovary, pesquisador na Faculdade Comunitária Queensborough, da Universidade da Cidade de Nova York, que não estava envolvido no trabalho. “A ideia é espetacular. É de cair o queixo de tão incrível”. Se confirmada, a descoberta oferece uma nova direção para o incipiente campo da astronomia multimeios. Ao estudar os buracos negros e seus arredores usando ondas gravitacionais e radiação eletromagnética, os cientistas esperam ser capazes de aprender mais do que poderiam usando apenas um dos sinais.
Há muito os cientistas debatem se uma fusão binária de buracos negros poderia gerar algum feixe de radiação, além das ondas gravitacionais. A maioria dos pesquisadores concorda que a colisão de buracos negros no vácuo não pode produzir luz. Mas um núcleo galático ativo, onde a gravidade de buracos negros supermassivos atrai o gás e a poeira para formarem um imenso disco de acreção, ofereceria as condições perfeitas para a geração de radiação. “É uma maneira completamente nova de fundir buracos negros”, diz Chiara Mingarelli, que estuda objetos celestiais no Centro para Astrofísica Computacional no Instituto Flatiron na Cidade de Nova York, e não estava envolvida na pesquisa.
Com tal possibilidade em mente, os pesquisadores recorreram ao Zwicky Transiente Facility (ZTF). Localizado no Observatório Palomar na Califórnia, esse projeto fotografa todo o céu do hemisfério Norte a cada três noites e pode localizar qualquer mudança abrupta na luminosidade. A equipe vasculhou os dados do ZTF em busca de feixes de luz emanando de núcleos ativos de galáxias que estejam próximas a fusões de buracos negros que já foram detectadas pelo Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferometria Laser (LIGO em inglês). Em quase todos os casos, os cientistas não encontraram nada. Mas, logo após a fusão de maio de 2019, um núcleo ativo de galáxia na mesma região do céu dobrou sua luminosidade. Os pesquisadores avaliaram todas as fontes possíveis do feixe que poderiam elencar e concluíram que a fonte mais provável era a fusão do buraco negro.
Ainda assim, eles ressaltam não ter certeza se sua explicação está correta. E apesar do entusiasmo de alguns cientistas, outros especialistas são muito céticos quanto a essas ideias. “Eu não consigo entender como alguém propôs essa interpretação”, diz Avi Loeb, físico teórico, diretor e fundador da Iniciativa para Buracos Negros da Universidade de Harvard. “Não faz sentido”,
Um mistério na fusão
Mas o anúncio feito em fins de junho não representou a primeira oportunidade em que astrônomos pensaram ter detectado luz emitida por buracos negros em fusão. Em 2015, o Telescópio Espacial de Raios Gama Fermi avistou um ligeiro pulso de raios gama oriundos da mesma região do espaço onde ocorreu a primeira fusão de buracos negros que o LIGO detectou. O sinal gerou uma profusão de especulações e explicações. Logo em seguida, Loeb propôs que os par de buracos negros se fundiu dentro de uma estrela, a qual, então, teria fornecido o gás necessário para que a luz fosse emitida. A comunidade acadêmica permaneceu sem acreditar. Muitos cientistas por fim constataram que a explosão de raios gama era provavelmente algo do acaso — uma emissão de algum outro objeto distinto, que foi erroneamente relacionado à fusão do buraco negro.
Loeb ainda acredita que, sob as condições certas, a fusão de buracos negros poderiam disparar um feixe de luz. Mas “eu tenho um problema grande em aceitar a sugestão de que esse feixe foi resultado de um processo de acreção no buraco negro [que se fundiu]”, ele diz. A luminosidade de objetos astronômicos geralmente possui um limite máximo, conhecido como Limite de Eddington. Em algumas circunstâncias, esse limite pode ser excedido por um fator de milhares. No cenário proposto no estudo, entretanto, o buraco negro fundido possuía uma luminosidade que era cerca de 100 mil vezes o valor do Limite de Eddington. “Nunca se ouviu falar de algo assim”, diz Loeb.
Matthew Graham, cientista de projeto na ZTF e autor principal da nova pesquisa, reconhece que uma luminosidade tão grande seria sem precedentes. Mas, baseado no conhecimento atual, “não é surreal. Não está além dos limites da possibilidade”, ele diz. Mesmo que ainda não seja factível rodar em computador simulações confiáveis das complexas interações entre buracos negros binários em um núcleo ativo de galáxia, as extrapolações feitas a partir de simulações anteriores convenceu a equipe de Graham que essa interpretação dos dados era a mais plausível.
“Pessoas razoáveis podem discordar sobre isso, mas nós podemos ter uma discussão”, diz Barry McKernan, coautor da pesquisa e astrofísico da Borough of Manhattan Community College, C.U.N.Y.. Se o feixe de luz não se originou de uma fusão de buracos negros, pode ter surgido a partir de uma “supernova muito, muito, esquisita”, diz o coautor do estudo Saavik Ford, também da Borough of Manhattan Community College. Outra possível fonte é a variação natural do núcleo de galáxia ativa, que é sabido que muda sua luminosidade com o tempo. Loeb suspeita que seja a primeira hipótese, enquanto Zoltan Haiman, da Universidade de Columbia, acredita na segunda. Dada a intensidade e o período da luz, ambas as explicações parece altamente improváveis para Ford e McKernan — mas não impossíveis.
Diferentemente da explosão de raios gama em 2015, a nova emissão de radiação permitiu que os pesquisadores façam previsões que logo serão testadas. De acordo com seu modelo, pelo menos um dos buracos negros que existiam antes da fusão estava girando rapidamente. “Isso é algo que nós temos que ter certeza para que nosso cenário faça sentido”, diz McKernan. A equipe também estima que a massa do buraco negro formado pela fusão seja cerca de 100 vezes a massa do Sol. A análise completa do LIGO sobre os dados de ondas gravitacionais, que poderá ser publicada ainda nos próximos meses, irá apoiar ou refutar ambas as afirmações. Além disso, à medida que o buraco negro resultante da fusão continue a orbitar o outro supermassivo, ele eventualmente irá re-entrará o disco de acreção, gerando outro feixe de luz que seria visível da Terra. A equipe estima que isso irá acontecer em cerca de um ano.
“O que mais me anima é essa previsão concreta”, diz Katerina Chatziioannou, membro da equipe Ligo que cuida de analisar as ondas gravitacionais daquele evento. “Estou esperando o que vai acontecer”. Se o segundo feixe ocorrer como previsto, dará início a uma nova era no estudo de núcleos ativos de galáxias.
Atualizações em ultravioleta
Para além das propriedades dos buracos negros em si, os feixes de luz emitidos por buracos negros resultantes de fusões poderiam revelar as propriedades dos discos de acreção nos núcleos ativos de galáxias. A partir desse primeiro feixe, a equipe de Graham fez uma estimativa da densidade do gás e da espessura do disco — cálculos impossíveis de serem feitos apenas com os dados das ondas gravitacionais. Futuros feixes poderiam oferecer outras pistas sobre a composição de núcleos ativos de galáxias, que “são peças cruciais de nosso entendimento sobre como se constróem as galáxias em nosso universo”, diz Ford.
Mas para que a astronomia multimeios possa florescer, os astrônomos devem atualizar suas ferramentas. Mesmo que o ZTF tenha detectado um feixe no espectro visível, Ford diz que será mais fácil localizar os feixes de outros buracos negros no comprimento de onda ultravioleta. Uma vez que a atmosfera da Terra absorve a maior parte da luz ultravioleta antes de alcançar observatórios localizados no chão, os cientistas vão precisar utilizar telescópios espaciais. Graham diz que o Observatório Neil Gehrels Swift da NASA é o melhor candidato mas é imperfeito: Swift foi projetado originalmente para estudar explosões de raios gama. E possui um campo de visão muito menor que o telescópio ZTF.
Há outros telescópios espaciais que são sensíveis à luz ultravioleta observando o céu. Nenhum, porém, é ideal para buscar por feixes de luz no processo de geração de ondas gravitacionais. “O ultravioleta foi de certa forma negligenciado pela comunidade [astronômica] por um tempo”, diz Bellovary de C.U.N.Y.. “Esse é um problema”. Ela e outros esperam que a nova pesquisa estimule o desenvolvimento de um telescópio ultravioleta com um campo de visão amplo. “Um satélite apropriado custaria muito dinheiro, mas eu certamente defenderia o gasto”, diz Ford.
Por enquanto, os cientistas esperam os resultados do LIGO e a previsões sobre o segundo feixe. Erin Kara, uma astrofísica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, acha a teoria da fusão de buracos negros “tentadora”. Ainda assim, não está pronta para aceita a ideia sem novas evidências. “A natureza aparece com todo tipo de coisas que não sabemos explicar”, diz Kara. “É bastante provável que não sejamos criativos o suficiente para conceber todos os possíveis fenômenos que possam causar estes feixes.”
Scott Hershberger
Publicado em 07/07/2020