Astrônomos encontram pela primeira vez um “buraco negro errante” à deriva na Via Láctea
Este é um momento bom para astrônomos caçando buracos negros. Os maiores — buracos negros supermassivos que podem pesar bilhões de sóis — foram encontrados nos centros de quase todas as galáxias, e até conseguimos imagear um deles. Enquanto isso, pesquisadores agora detectam rotineiramente ondas gravitacionais reverberando pelo Universo partindo de buracos negros menores se unindo. Mais perto de casa, nós testemunhamos os dramática pirotecnia celestial produzida quando o buraco negro no centro da Via Láctea e seus primos mais diminutos devoraram nuvens de gás ou até mesmo estrelas inteiras. No entanto, nunca antes vimos um fenômenos previsto há muito tempo: um buraco negro isolado flutuando à deriva pelo espaço, criado a partir de um núcleo de uma estrela massiva em colapso, e lançado ao longe sem destino.
Até agora.
Cientistas anunciaram a primeira descoberta inequívoca de um buraco negro errante, um viajante sem destino no vácuo a 5.000 anos-luz da Terra. O resultado, que foi publicado em 31 de janeiro no servidor de preprints arXiv mas ainda não foi revisado por pares, representa a culminação de mais de uma década de buscas árduas. “É muito empolgante”, afirma Marina Rejkuba, do Observatório Europeu do Sul, na Alemanha, e coautora do estudo. “Nós pudemos provar que buracos negros isolados realmente existem”. Essa descoberta pode ser apenas o começo; é esperado que sondagens em progresso e missões no futuro próximo revelem dúzias ou até mesmo centenas de outros desses viajantes obscuros e solitários. “É a ponta do icebergue”, afirma Kareem El-Badry, do Centro para Astrofísica Harvard-Smithsonian, não envolvido no estudo.
Em 1919, o astrônomo britânico Arthur Stanley Eddington realizou um experimento famoso. As teorias de Einstein da relatividade geral e especial haviam postulado que objetos massivos deveriam causar uma cavidade no espaço-tempo, dobrando os raios de luz próximos formando as chamadas “lentes gravitacionais”. Eddington provou que a teoria era verdadeira durante um eclipse solar, quando o brilho do Sol estava em seu mínimo para que as estrelas no céu ao seu redor pudessem ser vistas. Usando uma técnica conhecida como astrometria, ele tomou nota cuidadosamente da posição dessas estrelas antes e durante o eclipse, revelando uma leve alteração na sua localização aparente no céu, devido à deformação na luz causada pela atração gravitacional significativa da nossa estrela. “A posição aparente das estrelas passou por uma leve mudança”, afirma Feryal Özel, da Universidade do Arizona, que também não estava envolvido com o estudo.
Nas décadas subsequentes, cientistas perceberam um uso curioso para essa técnica. As estrela com, aproximadamente, mais de 20 vezes a massa do nosso Sol devem formar buracos negros no fim de suas vidas, quando seus núcleos densos colapsam no seu próprio peso, após a exaustão de seu combustível termonuclear. O nascimento de um buraco negro de massa estelar desse tipo — uma esfera do tamanho de uma cidade, contendo até algumas dúzias de vezes a massa do nosso Sol — é frequentemente acompanhada por uma supernova brilhante, gerada pela enorme energia liberada pelo núcleo em colapso. Essas forças podem ser tão intensas que algumas vezes lançam o buraco negro recém-nascido para fora de seu ventre, em uma jornada interestelar sem fim.
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Esse impulso por viajar — somado ao tamanho pequeno e à escuridão intrínseca aos buracos negros — deveriam torná-los praticamente impossíveis de serem vistos. No entanto, o trabalho de Eddington sugeriu que esses objetos expatriado poderiam ser encontrados ao observar seus efeitos de lente gravitacional — tipicamente um característico aumento transiente no brilho de quaisquer estrelas que o buraco negro passa na frente dentro de nosso campo de visão. As chances de ver um evento desse tipo para um buraco negro errante são muito pequenas, mas dado que é previsto que milhões de buracos negros estelares estejam vagando por nossa galáxia, alguns talvez aparecem em sondagens suficientemente abrangentes e profundas do céu noturno.
Hoje, diversos projetos buscam por esses e outros dos chamados “eventos de microlente gravitacional”, incluindo o Experimento de Lente Gravitacional Óptica (OGLE, na sigla em inglês), coordenado pela Universidade de Varsóvia, na Polônia, e a sondagem Observações de Microlente em Astrofísica (MOA), coordenada por pesquisadores da Nova Zelândia e do Japão. Em junho de 2011, essas duas sondagens identificaram algo notável: uma estrela aumentando repentinamente seu brilho, a 20 mil anos-luz, na direção do bojo galáctico densamente populado no centro da Via Láctea. Será que isso poderia ter sido um evento de microlente gravitacional de um buraco negro errante? Os astrônomos correram para descobrir.
Kailash Sahu, do Instituto de Ciência do Telescópio Espacial, em Baltimore (EUA), e autor principal do preprint do arXiv que detalha a descoberta do objeto, estava entre esses pesquisadores. Usando o Telescópio Espacial Hubble, ele e seus colegas focalizaram a estrela dentro de semanas do aumento de seu brilho, e então retornaram a ela diversas vezes durante os próximos seis anos. Eles puderam confirmar que o brilho da estrela havia aumentado, indicando a presença de algum objeto não visto capaz de gerar a lente gravitacional. Mas eles encontraram algo mais importante. A posição aparente da estrela no espaço mudou minimamente. O efeito foi “1.000 vezes menor do que aquele medido por Eddington”, afirma Sahu, e estava próximo aos limites da capacidade do Hubble. Algo escondido havia aumentado e distorcido a luz da estrela. O melhor candidato? Um buraco negro estelar invisível, de 7,1 vezes a massa do nosso Sol.
“Não havia nenhuma possibilidade além de um buraco negro”, afirma Sahu. Dois fatores eram necessários para confirmar que ele era realmente o culpado. “O primeiro critério era que não deveria ter nenhuma luz partindo [do objeto que gerou o fenômeno de] lente”, explica Sahu, para descartar objetos mais banais, como uma anã marrom, um tipo de estrela fracassada. O segundo era que o efeito de magnificação deve ter uma longa duração, dado o grande tamanho da esfera de influência gravitacional de um buraco negro. Durando por quase 300 dias, o evento de junho de 2011 se encaixava com os critérios. “É uma análise bastante minuciosa e cuidadosa”, afirma El-Badry. “Eles fizeram o seu trabalho”.
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A quantidade de distorção e deflexão da luz da estrela causada pelo evento de microlente gravitacional permitiu a Sahu e seus colaboradores a cravar a massa do suspeito buraco negro errante logo acima de sete massas solares. Isso o coloca “bem no meio” do que esperamos de buracos negros estelares, afirma Özel. A equipe também pôde calcular sua velocidade. “Ele está se movendo a aproximadamente 45 quilômetros por segundo”, afirma Sahu. Esse valor é relativamente alto quando comparado a estrelas próximas — exatamente o que é esperado para um buraco negro que recebeu um impulso na sua ejeção de uma enorme estrela morrendo. Não é claro quando esse evento pode ter acontecido, mas ele “pode estar perto de algo de 100 milhões [de anos atrás]”, afirma Sahu. “Não podemos afirmar porque não sabemos exatamente de onde ele veio”.
Entretanto, isso não é o primeiro indício observacional da microlente de um buraco negro estelar errante; diversos outros candidatos o antecedem. O que é diferente agora é a medição bem-sucedida da deflexão gravitacional da luz da estrela gerada pelo objeto, ao invés de apenas medir a amplificação, permitindo que a massa — e, dessa forma, sua verdadeira natureza — seja presumida conclusivamente. “Já houve identificações de buracos negros antes, mas elas não possuem as mesmas medições astrométricas”, afirma David Bennett, do Centro de Voos Espaciais Goddard, da NASA, e coautor do estudo da descoberta, ao lado de Sahu e outros. “Essa é a melhor técnica para buracos negros estelares isolados. Essa é nossa primeira tentativa em utilizá-la. Todos os buracows negros que foram encontrados no passado foram encontrados porque não estão isolados”.
A massa desse buraco negro errante oferece ainda mais evidência que os modelos de formação dos astrofísicos estão corretos — que burtacos negros solitários podem surgir das cinzas de estrelas projenitoras particularmente pesadas. No entanto, é possível que esses buracos negros errantes também podem se formar em sistemas binários, antes de se tornarem nômades do vácuo. Para este objeto em particular, não é possível dizer com certeza qual é sua história de origem. Porém, o que é certo é que encontrar mais buracos negros errantes vai permitir que pesquisadores analisem e refinem esses modelos em mais detalhes. “Nunca pudemos estudar buracos negros que estão sozinhos”, afirma Özel. “Então, essa nova forma de encontrá-los, e a capacidade de determinar sua massa, certamente é empolgante. Eles estão se formando de outra maneira? Sua distribuição de massa é diferente?”
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Respostas para essas perguntas podem chegar cedo. O telescópio Gaia da Agência Espacial Europeia está neste momento mapeando as posições de bilhões de estrelas na nossa Via Láctea. Em 2025, os cientistas do projeto irão publicar os dados de lentes gravitacionais das suas observações, e é esperado que contenham evidências de muitos gigantes solitários de massa estelar se arrastando por nossa galáxia. “Os dados do Gaia terão qualidade similar ou ainda melhor do que os do Hubble”, afirma Łukasz Wyrzykowski, da Universidade de Varsóvia, e coautor do estudo desta última descoberta, que também caça por buracos negros errantes com o Gaia. Os dados que serão publicados, estima ele, conterão dúzias de candidatos adicionais.
Também é esperado que o Observatório Vera C. Rubin, no Chile, que está preparado para começar uma sondagem de 10 anos do céu noturno no ano que vem, faça uma colheita de seus próprios buracos negros errantes, como também o Telescópio Espacial Nancy Grace Roman, da NASA, com lançamento planejado para 2027. Tanto Rubin como Roman possuem campos de visão extensos, permitindo que capturem vistas panorâmicas cheias de estrelas, nas quais devem vagar vastos números de buracos negros flutuando livremente. “A expectativa é que esses dados estarão lá”, afirma El-Badry. “A esperança é que [Rubin e Roman] poderão medir a mudança de posição astrométrica para muitas [estrelas]”.
Por enquanto, essa descoberta obscura antecipa um futuro brilhante para a pesquisa. Buracos negros errantes de massa estelar, há muito tempo previstos mas somente agora confirmados observacionalmente, podem ser comuns o suficiente em nossa galáxia para justificar estudos demográficos de sua população. Estabelecer qual é sua verdadeira abundância, massa e outras propriedades poderia fortalecer nossas teorias ainda incompletas de evolução estelar — ou revelar novas brechas importantes em nosso entendimento. “Esperamos por essa descoberta por muitos e muitos anos”, afirma Wyrzykowski. “Ela mostra que esse método funciona. Medições de microlentes gravitacionais são a maneira de encontrar esses buracos negros isolados”.
Jonathan O’Callaghan
Sobre o autor: Jonathan O’Callaghan é um jornalista freelance que cobre viagens espaciais comerciais, exploração espacial e astrofísica.Publicado originalmente no site da Scientific American dos EUA em 03/02/2022.