As paisagens do céu de Hércules Florence
“A 3 de setembro de 1825, partimos do Rio de Janeiro. Um vento fresco ajudou-nos a vencer, em 24 horas, a travessia de 70 léguas, até Santos, e isto significou dupla vantagem, porque a embarcação conduzia, também, 65 negros novos, infeccionados por sarna da cabeça aos pés.”
Assim começa o mais vivo, completo e bem documentado relato da famosa Expedição Langsdorff, que na sua derradeira e mais longa etapa, entre 1825 e 1829, percorreu o vasto e ainda bravio interior do Brasil, por via terrestre e fluvial – do Tietê ao Amazonas. Seu autor é um jovem francês de 21 anos, Hércules Florence, no cargo de desenhista topográfico. Encantado com as maravilhas das terras brasileiras e com seu povo hospitaleiro, Hércules Florence permaneceu aqui, ao término da expedição, escolhendo a então Vila de São Carlos, como Campinas foi conhecida até 1842, para viver o resto de sua vida. Florence morreu em 27 de março de 1879, deixando a seu país de adoção, além de 20 descendentes, um legado de realizações científicas, históricas, geográficas, artísticas, culturais, tecnológicas, agrícolas, comerciais e educacionais.
A família Florence conserva ciosamente coleções de documentos originais do patriarca, incluindo obras inacabadas e iéditas. Entre elas, as aquarelas e os textos do que Florence intitula “Atlas pittoresque des ciels” ou “Traité des ciels, à la usage des jeunes paysagistes”. Uma bisneta dele, Leila E. Florence de Moraes, desejosa de ver publicado este material, quis ouvir antes a opinião de especialistas, entre eles a de um físico ou meteorologista, e para isso fui procurado. E foi com crescente interesse e admiração pelo autor que examinei as aquarelas originais do “Atlas celeste pictórico” e os textos que as acompanham.
Desde o instante em que fora contratado, no Rio de Janeiro, pelo barão Langsdorff, o jovem Florence já se revelara pela qualidade e firmeza de seu traço e dons de observação. Como segundo desenhista (o primeiro era Aimé Adrien Taunay, morto trágica e prematuramente no rio Guaporé), provou ser um documentarista dotado de grande talento e sensibilidade.,Atento a detalhes da paisagem, também o céu foi por ele retratado com veracidade. Os aspectos pintados e comentados, detalhada e cuidadosamente, por escrito, pelo autor, se prestam perfeitamente a uma análise e interpretação pelo profissional da meteorologia. Por exemplo, quanto ao aspecto e significado das nuvens como indicadoras do estado atmosférico. O meteorologista pode até oferecer explicações técnicas ou científicas para fenômenos físicos cujas causas ou razões o artista confessa desconhecer.
É o que ocorre com o Segundo Estudo – (27 de julho de 1832) -, uma de suas belas paisagens do céu nublado. Florence destaca que “não saberia a razão” pela qual as nuvens são horizontais em sua parte inferior. De fato, as bases das nuvens cúmulos como as que estão tão bem representadas, apresentam todas, bases retas e horizontais, por causa da constância do nível de condensação, que depende apenas de duas propriedades da massa de ar – a temperatura do ar e do ponto de orvalho – distribuídas uniformemente numa camada de ar superficial bem misturada pelos ventos e as correntes térmicas verticais.
A altura da base dessas nuvens pode ser estimada, em metros acima do solo, multiplicando-se a diferença entre a temperatura e o ponto de orvalho observados ao nível do solo, por 125. Para condições típicas de inverno em Campinas, por exemplo: temperatura de 25o C e ponto de orvalho de 15o C, a altura da base seria 1.250 metros acima do nível do terreno. O ponto de orvalho é a temperatura de condensação, e é uma medida da umidade do ar, no caso igual a 54%. Caso o ar à superfície fosse resfriado de 25 para 15 graus, a nuvem se formaria sobre o solo e seria considerada nevoeiro. Se este mesmo ar à superfície for levantado por algum processo físico, ele atingiria a saturação a 1.250 metros de altura, quando a temperatura da porção ascendente igualaria a temperatura do ponto de orvalho. A primeira se reduz à razão de 1oC para cada 100 m de elevação, o segundo à razão de 0,2oC, aproximadamente, para cada 100 m de elevação.
Agudeza de observação
Em outros estudos, Florence comprova ser bom observador ao distinguir nuvens cumuliformes e estratiformes, as “protuberâncias” que caracterizam a convecção intensa dentro de nuvens cúmulos, o ciclo breve de duração de nuvens cúmulos menos desenvolvidas, e as torres das nuvens cúmulos que no Brasil tropical frequentemente se transformam em cumulonimbos, as nuvens das trovoadas, ao crescerem verticalmente, principalmente no verão. Ele também identifica as linhas de cúmulos associadas a fortes tempestades, quando formam parte das linhas de instabilidade, hoje melhor detectadas pelo radar. Visualmente, são denotadas por nuvens cúmulos alinhadas numa extensa fileira. E Florence representa com fidelidade o céu da Amazônia, “fervendo” de cúmulos, só possível com grande calor e umidade.,Uma de suas paisagens celestes mais espetaculares e que mostra sua agudeza de observação e talento de pintor é a “pirâmide invertida”, observada em 17 de setembro de 1832. Para o meteorologista, não deixa dúvida tratar-se de uma banda de altocúmulos, provavelmente associada à “corrente de jato”. Justamente neste mês o fenômeno é mais intenso e freqüente sobre os céus de São Paulo, como comprovam as observações por balões de radiossonda, lançados do aeroporto de Congonhas.
A corrente de jato é um eixo de máxima velocidade do vento nos níveis superiores da atmosfera (6 mil a 12 mil metros) e de grande importância à aviação, como causa de turbulência e ventos que, se contrários à rota, trazem problemas de alcance e prejuízo econômico a aeronaves comerciais. A corrente de jato sobre São Paulo na primavera é parte da corrente de jato subtropical, existindo ainda a corrente de jato polar, a maiores latitudes. Uma pintura de Florence de natureza semelhante é a das “10 horas da manhã”, sem data, e capaz de indicar tanto uma situação de corrente de jato, como uma invasão polar intensa em pleno inverno.
Os meteorologistas ainda hoje reconhecem as dificuldades de documentar e identificar as nuvens, atividades que fazem parte do seu trabalho. Os desenhos, apesar do seu poder de síntese, parecem grosseiros e inadequados, as fotografias dos quadros de classificação mais confundem que esclarecem. Tivemos essa experiência a bordo dos navios de pesquisa, quando procurávamos auxiliar os oficiais de navegação que deviam registrar os tipos de nebulosidade como parte da descrição do estado do tempo encontrado no mar. Mesmo para o artista, a dificuldade de pintar o céu é grande. É conhecida a história contada a respeito do pintor francês Harpignies. Procurado por um pai que pedia a ele ser professor de seu filho, dizendo que o menino “já sabia pintar o céu”, o mestre retrucou, “então não tem mais nada a aprender comigo, porque o céu é o que há de mais difícil”.
Tão impressionados ficamos com estes dois quadros mostrando estruturas de altocúmulos e cirrocúmulos em grandes bandas, que em nossa recente viagem de pesquisa à Antártida, ao observarmos e fotografarmos uma formação de nuvens deste tipo, não tivemos dúvida de denominá-la de “céu tipo Hércules Florence”. Ao mostrarmos este quadro a uma amiga pintora, sua reação foi imediata: “Este céu existe?”.,Para se apreciar com os devidos méritos as paisagens celestes de Florence, é preciso considerar que na sua época ainda não havia uma classificação científica das nuvens plenamente aceita. Datam de poucos anos antes – 1803 a 1805 – as duas primeiras classificações propostas, independentemente, por Lamarck, na França, e por Luke Howard, na Inglaterra. Mas só em 1891, e depois que o meteorologista inglês Ralph Abercromby escrupulosamente passara dois anos viajando pelo globo para assegurar-se da universalidade da classificação de Howard, é que foi finalmente adotada a classificação internacional das nuvens. E apenas em 1932 foi elaborado o primeiro atlas internacional das nuvens, encomendado ao serviço meteorológico da França, pela Organização Meteorológica Mundial. Por tudo isso, Hércules Florence pode ser considerado um pioneiro pesquisador das nuvens (ou precursor dos estudos das nuvens), como o foi em vários outros campos do engenho humano, como da fotografia, poligrafia e zoofonia.
Unindo ciência e arte
A atmosfera é palco de intrigantes fenômenos luminosos e ópticos, que não escaparam aos olhos de Florence, que soube revelar espírito científico e conhecimento da física das cores, unindo ciência e arte, à maneira de outros pintores contemporâneos na Europa, que então criavam o estilo impressionista, como nova forma de expressão artística na pintura. Na falta de melhores meios técnicos, Florence complementa suas aquarelas e desenhos com detalhadas instruções escritas sobre as cores e matizes que devem completá-las. Sua intenção é realmente ensinar os pintores a olhar e expressar convincentemente a paisagem celeste, tal como ela se lhe revelou nos límpidos ares brasileiros, ainda livres da poluição – salvo a fumaça das queimadas, que ele documenta, condenando o bárbaro costume.
Os meteorologistas ainda hoje reconhecem as dificuldades de documentar e identificar as nuvens, atividades que fazem parte do seu trabalho. Os desenhos, apesar do seu poder de síntese, parecem grosseiros e inadequados, as fotografias dos quadros de classificação mais confundem que esclarecem. Tivemos essa experiência a bordo dos navios de pesquisa, quando procurávamos auxiliar os oficiais de navegação que deviam registrar os tipos de nebulosidade como parte da descrição do estado do tempo encontrado no mar. Mesmo para o artista, a dificuldade de pintar o céu é grande. É conhecida a história contada a respeito do pintor francês Harpignies. Procurado por um pai que pedia a ele ser professor de seu filho, dizendo que o menino “já sabia pintar o céu”, o mestre retrucou, “então não tem mais nada a aprender comigo, porque o céu é o que há de mais difícil”.
É também conhecida a controvérsia a respeito dos quadros do notável paisagista inglês Turner, contemporâneo de Hércules Florence. Tão minucioso e amante da veracidade como este, Turner buscava a opinião dos meteorologistas para suas representações do céu e das tempestades, chegando certa vez, como o Ulisses de Homero, a fazer-se amarrar ao mastro de um barco durante uma tormenta no mar, para que pudesse observá-la sem perigo de ser varrido pelas ondas. Pobre Turner, justamente por sua veracidade em reproduzir o que via na natureza, foi duramente criticado na época por tornar os quadros “vazios” na cerração e nevadas, e inverossímeis pelo colorido. Florence, como Turner, destaca a fugacidade do colorido natural, conforme as condições do Sol, e o dinamismo que as constantes mudanças de matizes, sombras e formas imprimem à paisagem celeste. Tal a riqueza de motivos no céu, que Hércules Florence considera a pintura celeste uma excelente escola para qualquer pintor iniciante.,A pintura de Hércules Florence e seu incalculável valor como documentário refletem o caráter que desde muito jovem o distinguia, pela seriedade e honestidade de seus atos, pela sua escrupulosidade. Durante a expedição Langsdorff, Florence se distinguiu pela versatilidade com que desempenhou funções como organizador de logística, responsável pela obtenção de barcos, tropas, homens e víveres para a viagem, além de solucionar problemas práticos em benefício dos companheiros. Nesses aspectos, ele se compara aos grandes pioneiros que, no final do século XIX e início do século XX, exploraram a Antártida, penetrando no interior do continente gelado. Seu papel compara-se ao do médico Edward Wilson, das expedições de Scott, que nos legou notáveis pinturas, incluindo quadros de espetaculares fenômenos ópticos e luminosos característicos da atmosfera no Pólo Sul.
Desafios ao pintar o céu
Hércules Florence e Edward Wilson, com seu talento e coragem, enfrentaram como artistas, um desafio considerado insuperável por muitos estudiosos da arte e das ciências, assim expresso por um autor alemão: “O homem nunca poderá igualar o pintor divino e reproduzir as cores e a diversidade de aspectos do céu e da atmosfera” (Lobsack). Que não é fácil – talvez seja mesmo uma tarefa desigual – mostra-o o próprio Hércules Florence, ao escrever sobre as inadequações de suas tentativas.
Os quadros, as anotações, e descrições da paisagem celeste de Florence enriqueceram minha cultura e formação profissional de meteorologista. Acostumado a olhar constantemente o céu, passei a perceber ou a procurar sentir o que seus olhos viam, em termos de cores, formas, fenômenos ópticos, e beleza. A contemplação do pôr-do-sol, para mim o momento mágico da incomparável paisagem brasileira, ganhou um novo encanto.
Cabe acrescentar uma pequena observação crítica a alguns de seus esboços (muitos inacabados). Os elementos bulbosos que formam os contornos externos das nuvens convectivas são, por vezes, retratados com demasiada uniformidade geométrica, dando-lhes aparência um tanto artificial. A dificuldade parece ser pressentida pelo próprio Florence e se deveria à inadequação da técnica de pintura em aquarela. Entretanto, em alguns quadros, um efeito natural parece melhor logrado neste respeito, como no de “27 de julho de 1832” (fundo marinho) e, em menor grau, no de “9 de março de 1835” (fundo do rio Amazonas).,A Expedição Langsdorff
No início de 1813, chegou ao Rio de Janeiro o barão Georg Heinrich von Langsdorff, para chefiar o Consulado Geral da Rússia, a mando do czar Alexandre I. Médico, membro da Academia de Ciências de São Petersburgo, o barão, nascido na Alemanha, viria a assumir a cidadania russa, com o nome Grigori Ivanovitch Langsdorff. O principal objetivo do império russo era a expansão das relações comerciais com o Brasil, no passado dificultadas pelo embargo imposto pela coroa portuguesa.
Em abril de 1821, fazem escala no Rio de Janeiro, as corvetas Mirny e Vostok, da expedição chefiada por outro nobre de nome alemão, também a serviço do czar, Fabiano Tadeu Gotlieb von Bellingshausen, que acabara de completar a circunavegação do globo e se tornara o descobridor da Antártida. Langsdorff e outros diplomatas russos embarcam nos navios da expedição e regressam à Europa. Pouco antes, o rei D. João VI partira do Rio para Portugal, deixando D. Pedro I como príncipe-regente.
Em março de 1822, Langsdorff está de volta ao Rio de Janeiro, com a autorização do czar para organizar uma expedição científica no Brasil. Langsdorff relaciona-se diretamente com D. Pedro I (seu hóspede na Fazenda Mandioca) e com José Bonifácio de Andrada e Silva – ambos próceres da Independência, declarada em 7 de setembro de 1822.
O governo imperial brasileiro, em apoio à expedição Langsdorff, concede-lhe vultoso crédito e privilégios alfandegários. Em 1824, a expedição se inicia, com uma primeira viagem a Minas Gerais. Seu objetivo: realizar “descobertas científicas, investigações geográficas, estatísticas e o estudo de produtos desconhecidos no comércio”, bem como fazer uma coleção de “objetos de todos os reinos da natureza”. Em setembro de 1825, a expedição iniciou as pesquisas na Província de São Paulo.,Partindo de Porto Feliz, em 22 de junho de 1826, com apoio do médico e líder político Francisco Álvares Machado (o futuro sogro de Florence), a expedição tem por meta atingir o rio Amazonas, por via fluvial. O porto de Cuiabá é alcançado em 30 de janeiro de 1827. A viagem só se reinicia em 5 de dezembro, dividida em dois grupos: o primeiro, com Langsdorff, Hércules Florence e o astrônomo Rubtsov, oficial da Marinha russa, dirige-se ao rio Tapajós, por onde alcançam Santarém, em 1o de julho de 1828. Neste trecho, Langsdorff e outros expedicionários adoecem gravemente. O outro grupo, que demanda os rios Guaporé, Mamoré e Madeira, sofre ainda pior sorte. Em 14 de fevereiro de 1828, afoga-se no rio Guaporé o primeiro desenhista, Aimé Adrien Taunay, de 25 anos. A expedição, finalmente reunida em Belém, regressa por navio ao Rio de Janeiro em 13 de março de 1829.
Os registros e materiais científicos da Expedição Langsdorff – referentes a zoologia, botânica, mineralogia, etnografia, medicina, linguística etc. – estiveram praticamente 100 anos perdidos nos arquivos das instituições científicas, da Marinha e da diplomacia da ex-URSS, em Moscou e Leningrado. O diário de Florence só foi publicado, em versão resumida, em 1875, traduzida pelo Visconde de Taunay, na revista do Instituto Histórico Brasileiro. E na sua versão completa, traduzida por Francisco Álvares Machado e Vasconcellos Florence, apenas em 1977.
A obra iconográfica de Florence e os apontamentos de seu diário são considerados uma das mais importantes e confiáveis contribuições ao conhecimento dos povos indígenas brasileiros e da natureza das regiões que habitavam, no começo do século 19. No Museu Paulista, estão expostos quadros baseados nos desenhos de Florence e Amado Adriano Taunay.,Viagem fluvial do Tietê ao Amazonas. Hércules Florence, tradução de Francisco Álvares Machado e Vasconcellos Florence, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 1977.
O poliédrico Hércules Florence. P.M. Bardi, Agenda Olivetti 1980.
À la découverte de l\’Amazone. Mario Carelli, Gallimard, 1992.
Brasil-URSS, A Expedição Langsdorff. V. Shukhanov, em Em Foco (Revista de informação cultural sobre a União Soviética), n.o 4, abril 1983, pp. 28-33.
Les Nuages. Roger Clausse e Léopold Facy, Éditions Seuil, 1959.
Cézanne – Landscapes. The Little Library of Art, Methuen, 1969.
Retratos de la nada. Knut Julio Riegner, em La Prensa (B. Aires), 7/2/90.
História das Bandeiras Paulistas. Affonso de E. Taunay, Melhoramentos, 2.a ed., 1961.