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Após anos de espera, divulgação de resultados de acelerador de partículas anima físicos

Os dados iniciais do Muon g-2 sugerem que partículas e forças subatômicas ainda desconhecidas podem ter influenciado experimento

O magneto do anel de armazenamento g − 2 no Fermilab, que foi originalmente projetado para o experimento Brookhaven g − 2. A geometria permite que um campo magnético muito uniforme seja estabelecido no anel

Quando centenas de físicos se reuniram em uma chamada da Zoom, no final de fevereiro, para discutir os resultados de seus experimentos, nenhum deles sabia o que haviam encontrado. Procedendo como médicos em um ensaio clínico, os pesquisadores do experimento Muon g-2 ocultaram seus dados, suprimindo uma única variável, o que os impediu de serem tendenciosos ou mesmo de, ao longo de anos, entenderem o que realmente significavam as informações com as quais estavam trabalhando.

Mas quando os dados foram revelados no Zoom, os físicos sabiam que a espera valera a pena: seus resultados são mais uma evidência de que há uma nova física está se escondendo nos múons, os primos mais volumosos dos elétrons. “Foi aí que ficamos conhecendo  os resultados. Até então não tínhamos ideia ”, diz Rebecca Chislett, física da University College London, que faz parte da colaboração Muon g-2. “Foi emocionante, estressante e sentimos um pouco de alívio.”

Apesar de seu notável sucesso em explicar as partículas e forças fundamentais que compõem o universo, a descrição do Modelo Padrão permanece lamentavelmente incompleta. Não leva em conta a gravidade, para começar, nem aborda assuntos como  a natureza da matéria escura, da energia escura e as massas dos neutrinos. Para explicar esses fenômenos e muitos outros, os pesquisadores têm procurado sinais de uma nova área da física – ou seja, explicações físicas que se estendam para além do modelo padrão  – focando anomalias nas quais os resultados experimentais divergem das previsões teóricas.

O experimento Muon g-2 é realizado no Laboratório Nacional Fermi em Batavia, no estado americano de Illinois, e visa medir com precisão o aspecto magnético dos múons, observando sua oscilação num campo magnético. Se o valor experimental do momento magnético dessas partículas diferir da previsão feita pelas teorias – um comportamento considerado anômalo  – esse desvio pode ser um sinal de que há uma nova física a ser descoberta, como alguma partícula ou força sutil, ainda desconhecidas, que influencia o múon. O valor experimental recém-atualizado para múons, relatado na quarta-feira na Physical Review Letters, diverge  da teoria por apenas um valor minúsculo (0,00000000251) e tem uma significância estatística de 4,2 sigma. Mas mesmo essa pequena quantidade pode mudar profundamente o desenvolvimento  da física de partículas.

“Minha primeira impressão é‘ Uau ’”, diz Gordan Krnjaic, um físico teórico do Fermilab, que não esteve envolvido na pesquisa. “É quase o melhor cenário de caso possível para especuladores como nós … Estou pensando  que isso, possivelmente, é uma nova física, e tem implicações para experimentos futuros e para possíveis conexões com a matéria escura.”

Nem todo mundo é tão otimista. Numerosas anomalias já foram detectadas, porém posteriormente desapareceram, deixando o Modelo Padrão vitorioso e gerando nos físicos um cansaço ​​da perspectiva de descobertas revolucionárias.

“Minha sensação é de que não há nada de novo sob o Sol”, diz Tommaso Dorigo, um físico experimental da Universidade de Pádua, na Itália, que também não esteve envolvido com o novo estudo. “Acho que é ainda mais provável que seja um erro de cálculo teórico… Mas é certamente a coisa mais importante que temos a examinar atualmente.”

Os múons são quase idênticos aos elétrons. As duas partículas têm a mesma carga elétrica e outras propriedades quânticas, como o spin. Mas os múons são cerca de 200 vezes mais pesados ​​do que os elétrons, o que faz com que tenham uma vida útil curta e se decomponham em partículas mais leves. Como resultado, os múons não podem desempenhar o papel central dos elétrons na formação de estruturas: de  moléculas a montanhas – na verdade, basicamente  todas as ligações químicas entre os átomos – só subsistem graças à estabilidade dos elétrons.

Quando o físico alemão Paul Kunze observou o múon pela primeira vez em 1933, ele não tinha certeza do que fazer com ele. “Ele identificou este registro de algo que não era um elétron nem um próton, e que ele chamou, na minha tradução, de ‘uma partícula de natureza incerta’”, diz Lee Roberts, físico da Universidade de Boston e parte da equipe do Muon g-2. A partícula então recém-descoberta representava uma complicação curiosa para o conjunto até então limitado  de partículas subatômicas conhecidas, o que levou o físico Isidor Isaac Rabi a questionar: “Veja o múon. Quem é que pediu isso? “. Nas décadas seguintes, o  dilúvio de partículas exóticas descobertas mostrou que, na verdade, o múon era  parte de um conjunto maior. Porém,  a história foi gentil com a confusão de Rabi: acontece que pode realmente haver algo estranho com relação ao múon.

Em 2001, o experimento E821 no Laboratório Nacional de Brookhaven em Upton, N.Y., encontrou indícios de que o momento magnético dos múons divergia das previsões teóricas. Na época, a descoberta não era robusta o suficiente porque tinha uma significância estatística de apenas 3,3 sigma: ou seja, mesmo se não houvesse uma física desconhecida atuando, os cientistas ainda poderiam esperar que, por puro acaso, se verificasse uma divergência daquelas proporções  uma vez a cada mil vezes que o experimento fosse executado.  O resultado ficou aquém de 5 sigma – que designa a ocorrência de um evento por acaso a cada 3,5 milhões de execuções do experimento – mas era grande o suficiente para despertar o interesse dos pesquisadores para experimentos futuros.

Com uma significância estatística de 4,2 sigma obtida pelos dados, os pesquisadores ainda não podem dizer que fizeram uma descoberta. Mas as evidências de que exista uma nova física relacionada aos  múons – somadas a anomalias recentemente observadas no experimento Large Hadron Collider Beauty (LHCb) no CERN, perto de Genebra – são tentadoras.

Múons em movimento

A maioria dos experimentos de física reutiliza alguns componentes. Por exemplo, o Large Hadron Collider é baseado no túnel projetado para, e anteriormente ocupado por, seu predecessor, o Large Electron-Positron Collider. Mas os físicos experimentais  por trás do Muon g-2 levaram as coisas mais longe do que a maioria quando, em vez de construir um novo magneto, eles enviaram o anel de 15 m de Brookhaven em uma viagem de mais de 5 mil km  até sua nova casa, no Fermilab.

O magneto ocupa um lugar central no Muon g-2. Um feixe de píons positivos – partículas leves feitas de um quark up e um antiquark down – decompõe-se em múons e neutrinos de múon. Os múons são coletados e canalizados em um caminho circular ordenado ao redor do magneto, que eles circularão, no máximo, alguns milhares de vezes antes de se decomporem em pósitrons. Ao detectar a direção dos decaimentos do múon, os físicos podem extrair informações sobre como as partículas interagiram com o ímã.

Como funciona esse processo? Imagine cada múon como um minúsculo relógio analógico. À medida que a partícula circunda o magneto, seu ponteiro das horas gira e gira a uma taxa prevista pela teoria. Quando o tempo do múon termina, ele decai em um pósitron que é emitido na direção do ponteiro das horas. Mas se esse ponteiro girar a uma taxa diferente da teoria – digamos, um “tique-taque” rápido demais – o decaimento do pósitron terminará apontando em uma direção ligeiramente diferente. (Nesta analogia, o ponteiro das horas corresponde ao spin do múon, uma propriedade quântica que determina a direção do decaimento do múon.) Basta detectar pósitrons suficientes com desvio suficiente, e você terá uma anomalia.

As implicações de uma anomalia são ambíguas. Pode ser que haja  algo não abordado pelo Modelo Padrão, e pode ser uma diferença entre elétrons e múons. Ou talvez exista sim um efeito semelhante atuando sobre os elétrons, porém ele é pequeno por demais para que seja visto com os recursos atuais. (A massa de uma partícula está relacionada à capacidade que ela tem de interagir com partículas desconhecidas mais pesadas, então os múons, que têm cerca de 200 vezes a massa dos elétrons, são muito mais sensíveis.)

O Muon g-2 começou a coletar dados quando da sua primeira temporada de funcionamento, em 2017, mas os resultados não haviam saído até agora porque o processamento dessas informações era uma tarefa árdua. “Embora as pessoas possam ter desejado  os resultados saíssem antes, isso é o reflexo do longo período que tivemos que dedicar aos esforços necessários para  para entender as coisas”, diz Brendan Kiburg, físico do Fermilab, que faz parte da colaboração.

Sozinho, o valor experimental de Muon g-2 não indica muito. Para ter significado, ele deve ser comparado com a última previsão teórica, que foi obra de cerca de 130 físicos.

A necessidade de reunir tamanho  poder cerebral se resume a isto: quando um múon viaja pelo espaço, esse espaço não está realmente vazio. Em vez disso, é uma sopa fervilhante com um número infinito de partículas virtuais que podem surgir e desaparecer da existência. O múon tem uma pequena chance de interagir com essas partículas que o “puxam”, influenciando o modo como ele se comporta. Calcular o efeito das partículas virtuais no spin do múon – a taxa em que seu ponteiro das horas gira – requer uma série de determinações teóricas igualmente árduas e incrivelmente precisas.

Tudo isso significa que a previsão teórica para múons tem suas próprias incertezas, que os teóricos vêm tentando reduzir. Um caminho é através da  cromodinâmica quântica de rede (QCD), uma técnica que depende de grande poder computacional para resolver numericamente os efeitos das partículas virtuais nos múons. De acordo com Aida X. El-Khadra,  físico da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, que não estava envolvido com o resultado experimental, cerca de meia dúzia de grupos buscam uma solução para o problema.

Só no começo

A diversão só está começando. Nos próximos dias e semanas, uma torrente de artigos teóricos tentará dar mais sentido ao novo resultado. Modelos que introduzem a existência de novas partículas, como o bóson Z ‘e o leptoquark, serão atualizados à luz das novas informações. Enquanto alguns físicos especulam sobre o que, exatamente, a anomalia do múon poderia significar, o esforço para reduzir as incertezas e empurrar o grau de certeza sobre a anomalia acima de 5 sigma está em andamento.

Os dados da segunda e terceira temporadas de funcionamento  do Muon g-2 são esperados para daqui a 18 meses, de acordo com Kiburg e Chislett, e essa informação pode empurrar a anomalia para além do limite de 5 sigma – ou diminuir sua significância. Se não for decisivo, os pesquisadores do J-PARC (Japan Proton Accelerator Research Complex), um laboratório de física em Tokai, no Japão, podem ter uma resposta. Eles planejam uma checagem independente do resultado do Muon g-2 usando um método ligeiramente diferente para observar o comportamento do múon. Enquanto isso, os teóricos continuarão a refinar suas previsões para reduzir a incerteza de suas próprias medições.

Mesmo que todos esses esforços confirmem que há uma nova física em ação nos múons, eles não serão capazes de revelar o que, exatamente, é essa nova física. A ferramenta necessária para revelar sua natureza pode ser um novo colisor – algo que muitos físicos estão defendendo  por meio de propostas como o International Linear Collider e o High-Luminosity LHC. Nos últimos meses, aumentou o interesse em torno de um colisor de múons, algo que vários estudos preveem que proporcionaria  aos físicos a capacidade de determinar as propriedades da partícula  ou da força, ainda desconhecida, que afeta o múon.

Mesmo aqueles que são céticos sobre a importância do novo resultado não podem deixar de encontrar uma fresta de esperança. “É bom para a física de partículas”, diz Dorigo, “porque a física de partículas está morta há um bom tempo”.

 

Daniel Garisto

Publicado em 07/04/2021

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