Antiga missão da Nasa pode ter encontrado supostos indícios de vida em Vênus 40 anos atrás
Em setembro, cientistas anunciaram a surpreendente descoberta de fosfina em Vênus. Essa substância, composta de fósforo e hidrogênio, costuma ser associada à vida. Mas, enquanto surgem planos para buscar confirmar a descoberta, empregando tanto observações feitas a partir da Terra como voos de sondas espaciais, os dados obtidos dez anos atrás por uma missão à Vênus poderiam proporcionar uma clara verificação do achado, e talvez trazer mais revelações.
A divulgação da possível descoberta da fosfina na atmosfera venusiana gerou tanto aplausos quanto reações de cautela. Para confirmar a detecção, os cientistas precisam obter mais dados, seja recorrendo a telescópios gigantes ou a novas missões interplanetárias. Se a presença do gás for confirmada, os pesquisadores seriam forçados a questionar suas origens, o que incluiria a possibilidade de que a substância esteja sendo produzida por alguma forma de vida monocelular que flutua nas nuvens do planeta. “Caso exista realmente fosfina lá, e isso seja um sinal de vida, então isso seria uma maneira de começar a construir uma biosfera”, diz Clara Sousa-Silva, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, coautora da pesquisa que relatou a descoberta.
++ LEIA MAIS
Astrônomos sugerem que Vênus poderia ser habitável hoje se não fosse por Júpiter
Sonda que sobrevoará Vênus em outubro poderá buscar por indícios de vida
Muitos especialistas acreditam que a melhor chance de verificar a fosfina venusiana virá de sondas atmosféricas capazes de sentir diretamente o gás. Mas tais missões não são voos futurísticos; na verdade, já foram realizadas, com exemplos notáveis que incluem a longa série de espaçonaves Venera, da União Soviética, e a Pioneer Venus Multiprobe, da Nasa, uma missão que lançou quatro sondas na atmosfera do planeta em dezembro de 1978.
Uma das maiores sondas da Pioneer, um instrumento chamado Large Probe Neutral Mass Spectrometer (LNMS) buscou por gases na atmosfera. O foco dos cientistas da missão estava em moléculas como dióxido de carbono, dióxido de enxofre e argônio, que se sabe existirem por lá em abundância. Porém, após olhar novamente para os dados, Rakesh Mogul, professor de química biológica na Universidade Politécnica do Estado da Califórnia, sugere que os cientistas da missão subestimaram seu instrumento, que poderia ter encontrado traços de outras moléculas, incluindo a própria fosfina.
“Conseguimos extrair alguns dados da literatura de cerca de 40 anos atrás”, diz Mogul, cuja equipe recentemente postou suas descobertas no servidor de pré-publicações arXiv.org. “E achamos que conseguimos identificar algumas coisas interessantes. Nós acreditamos que a evidência sugere a presença de fosfina.”
Instrumentos como o LNMS identificam moléculas ao medirem a velocidade com que se chocam com um detector, o que permite o cálculo de suas massas. Mogul suspeita que, na análise inicial dos dados do LNMS realizada na década de 1980, os cientistas deram prioridade às moléculas que acreditavam já existir na atmosfera venusiana. “Eles estavam interessados nas propriedades essenciais da atmosfera, e em como essas propriedades se alteram conforme varia a altitude”, ele diz.
Entretanto, a sensibilidade do instrumento LNMS pode ter permitido a detecção de mais moléculas do que se acreditava, incluindo a fosfina. “As pessoas descartaram [essas moléculas] porque elas acharam que elas não poderiam existir” na atmosfera, diz Mogul. Seria fácil que alguém deixasse passar a sutil evidência da presença das moléculas em meio aos dados da LNMS, especialmente se esse alguém não estivesse conduzindo uma busca planejada. Foi preciso que, mais de 40 anos depois, ocorresse o surpreendente anúncio da detecção da fosfina para que se pudesse discernir outras coisas que poderiam estar ocultas em meio aos dados.
Sousa-Silva nota que, se essa interpretação dos resultados da Pioneer estiver correta, seria uma confirmação rápida e empolgante da detecção da fosfina feita por sua equipe. Tal confirmação também poderia sugerir que o composto está presente na atmosfera venusiana há pelo menos quatro décadas, o que significa que deve existir um processo que está reabastecendo esse composto, seja biológico ou não. Em outras palavras, isso significaria que a fosfina recém-descoberta “não foi apenas um evento esquisito que conseguimos captar”, ela diz.
Nem todos estão convencidos. O cientista planetário Mikhail Zolotov da Universidade do Estado de Arizona, argumenta que é improvável que os dados de Pioneer sejam precisos o suficientemente para detectar a fosfina, e não uma mistura mais mundana de gases que sejam ricos em fósforos e sulfato de hidrogênio, por exemplo. Além disso, ele diz, se a detecção da LNMS for genuína, ela sugere que existiria uma abundância muito maior do que o que foi detectado pela equipe de Sousa-Silva – tão maior que, na verdade não seria compatível com os pequenos traços que foram detectados pela descoberta recente. Se Mogul e seus colegas tiverem interpretado corretamente os dados da Pioneer, diz Zolotov, “nós esperamos uma concentração muito maior de fosfina do que a que foi medida pelos astrônomos, o que também é uma bandeira vermelha.”
Até agora, Mogul e seus colaboradores só conseguiram acessar uma pequena parte da informação da missão, que cobre altitudes entre 50 e 60 quilômetros acima da superfície de Vênus. No entanto, a sonda conseguiu a reunir dados que abarcam desde a superfície do planeta até uma altitude de 90 quilômetros. Se essas dados pudessem ser analisados, e se a presença da fosfina pudesse ser confirmada, eles poderiam revelar mais informações sobre a distribuição atmosférica do gás, o que poderia ser uma pista vital para descobrir sua origem. Infelizmente, embora a cópia física dessa informação esteja armazenada no NASA Space Science Data Coordinated Archive (NSSDCA) no Centro Espacial Goddard, da Nasa, o acesso ao arquivo está restrito temporariamente devido à COVID-19.
“Nós temos alguns dados desse experimento, [mas] infelizmente a maior parte está guardada em microfilme e não é fácil de acessar”, diz David Willians, diretor da NSSDCA. “Estamos atualmente tentando conseguir permissão para que um de nós possa entrar e digitalizar esse microfilme, porque já recebemos pedidos para isso.”
Outros dados em arquivos podem ser úteis também. Sousa-Silva está atualmente examinando antigas observações feitas em telescópios infravermelhos de Vênus, caçando por outras evidências ignoradas de fosfino. E Sanjay Limaye, da Universidade de Wisconsin, que é um dos co-autores da pré-publicação de Mogul, diz que, mesmo que os instrumentos das antigas sondas soviéticas Venera não tivessem capacidade para detectar a fosfina, talvez tenham registrado evidências da presença de fósforo. Se isto for encontrado nos dados da sondas, poderia ser interpretado como indicação da existência da fosfina. Ele nota, entretanto, que o paradeiro da maioria desses dados é desconhecido. Ainda assim, Limaye diz, “alguém provavelmente tem alguns registros”.
Diversas sondas espaciais estão prontas para sobrevoar Vênus em breve: a BepiColombo, da Europa e do Japão; a Parker Solar Probe, da Nasa, e o Solar Orbiter da Europa. E algumas delas poderiam procurar pela fosfina. Mas, talvez, as principais evidências sejam encontradas na Terra, nos arquivos de missões antigas que há quase meio século esperam ser desvendados. “Se essas medições forem reais, [a fosfina] esteve presente [em Vênus] por quase 40 anos”, diz Mogul. “Então algo está produzindo”. A questão seria então: o quê?
Jonathan O’Callaghan
Publicado em 06/10/2020