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Achado de crânio de 3,8 milhões de anos revela face de ancestral de “Lucy”

Encontrado na Etiópia, fóssil ajuda a entender os processos de diversificação na história da espécie

Visão frontal do MRD. Foto: Museu de História Natural de Cleveland/Divulgação

Um crânio “extraordinariamente completo” de um ancestral humano que viveu há 3,8 milhões de anos foi encontrado no sítio paleontológico de Woranso-Mille, na região de Afar, Etiópia. O crânio foi encontrado por equipe de pesquisadores liderada por Yohannes Haile-Selassie, professor da Case Western Reserve University e curador do Museu de História Natural de Cleveland. Eles trabalham no local há 15 anos, e descobriram o crânio em fevereiro de 2016. Desde que foi feita a descoberta, os paleoantropólogos do projeto conduziram análises extensas no fóssil — chamado de MRD-VP-1/1 ou “MRD” —  enquanto os geólogos trabalharam na determinação de sua idade e do contexto do espécime. Os resultados das descobertas foram publicados em dois artigos na revista científica Nature.

O crânio, com 3,8 milhões de anos, representa um intervalo de tempo entre 4,1 e 3,6 milhões de anos, período em que fósseis de ancestrais humanos são extremamente raros, especialmente fora da área de Woranso-Mille. O MRD dá novas informações sobre a morfologia craniofacial do Australopithecus anamensis, uma espécie amplamente aceita como ancestral da espécie do famoso fóssil “Lucy”, o Australopithecus afarensis. O MRD também mostra que a espécie de Lucy e seu ancestral hipotético, o A. anamensis, coexistiram por aproximadamente 100.000 anos, desafiando suposições anteriores de que teria havido uma transição linear entre esses dois ancestrais primitivos. “É um divisor de águas na nossa compreensão sobre a evolução humana durante o Plioceno”, diz Haile-Selassie 

O projeto Woranso-Mille realiza pesquisas de campo na região central de Afar, na Etiópia, desde 2004. O trabalho já coletou mais de 12.600 amostras fósseis, representando cerca de 85 espécies de mamíferos. A coleção de fósseis inclui cerca de 230 espécimes de hominíneos fósseis que datam de 3,8 a 3,0 milhões de anos atrás.

A primeira parte do MRD —  a mandíbula superior — foi encontrada em 10 de fevereiro de 2016, em uma localidade conhecida como Miro Dora, no distrito de Mille do estado regional de Afar. A amostra estava exposta na superfície, e uma investigação mais aprofundada da área resultou na recuperação do restante. “Não pude acreditar nos meus olhos quando vi o resto do crânio. Foi um momento “eureka”, um sonho se tornado realidade”, conta Haile-Selassie.

Determinação da idade e local geológico

Em um artigo publicado na mesma edição da Nature, a equipe de Beverly Saylor, da Case Western Reserve University, determinou a idade do fóssil em 3,8 milhões de anos, datando minerais em camadas de rochas vulcânicas próximas. Eles mapearam os níveis datados do local fóssil usando observações de campo e propriedades químicas e magnéticas das camadas rochosas. Saylor e seus colegas combinaram as observações de campo com a análise de restos biológicos microscópicos para reconstruir a paisagem, a vegetação e a hidrologia do local onde o MRD morreu.

O MRD foi encontrado em depósitos arenosos de um antigo delta onde um rio encontrava um lago. O rio provavelmente se originava nas terras altas do planalto etíope, enquanto o lago se desenvolveu em altitudes mais baixas, onde a atividade geológica fazia com que a superfície da Terra se esticasse e afinasse, criando as terras baixas da região de Afar. Fluxos de detritos e ejeção vulcânica ocasionalmente desciam para o lago, que, eventualmente, foi enterrado pelos fluxos de lava basáltica. Esse tipo de atividade vulcânica, seguida da mudança dramática na paisagem, é comum em paisagens de Cânions. “As camadas vulcânicas que cobriram ocasionalmente a superfície da terra e o fundo do lago nos permitiram mapear essa paisagem e entender como ela mudou com o tempo”, conta Saylor.

Fósseis de grãos de pólen e remanescentes químicos de plantas e algas, preservados no lago e nos sedimentos do delta, fornecem pistas sobre as antigas condições ambientais do local. Mais especificamente, indicam que o lago próximo ao ponto onde o MRD morreu era provavelmente salgado, e que a bacia hidrográfica do lago era mais seca, mas que também havia áreas florestadas nas margens do delta ou ao longo do rio que alimentava o sistema lacustre. “O MRD vivia perto de um grande lago em uma região seca. Estamos ansiosos para realizar mais experimentos nesses depósitos para entender o ambiente da época, a sua relação com a mudança climática e como isso afetou a evolução humana, se é que afetou”, explica Naomi Levin, coautora do estudo na Universidade de Michigan.

Reconstrução facial do MRD. Crédito: John Gurche/Susan Klein/George Klein

Implicações da descoberta

Entre as descobertas mais importantes da equipe, está a de que o Australopithecus anamensis e sua espécie descendente, o conhecido Australopithecus afarensis, coexistiram por um período de pelo menos 100.000 anos. Esta descoberta contradiz a noção antiga de uma relação de anagênese entre esses dois táxons, na qual uma espécie desaparece dando origem a uma nova espécie, de maneira linear.

O Australopithecus anamensis é o mais antigo membro conhecido do gênero Australopithecus. A espécie era anteriormente conhecida apenas através de dentes e fragmentos de mandíbula, todos datados entre 4,2 e 3,9 milhões de anos atrás. As semelhanças entre a dentição preservada do MRD, de 3,8 milhões de anos, e os dentes e maxilares previamente conhecidos de A. anamensis levaram a uma confirmação do MRD como um membro do A. anamensis. Além disso, devido ao raro estado quase completo do crânio, os pesquisadores identificaram características faciais nunca antes vistas na espécie. 

“O MRD tem uma mistura de características faciais e cranianas primitivas e derivadas que eu não esperava ver em um único indivíduo”, diz Haile-Selassie. Stephanie Melillo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária da Alemanha, co-autora dos artigos, completa: “O A. anamensis já era uma espécie sobre a qual sabíamos bastante, mas este é o primeiro crânio da espécie descoberto. É bom finalmente poder associar o nome a um um rosto.”

Algumas características foram passadas para a espécie descendente, Australopithecus afarensis, enquanto outras diferem significativamente e tem mais em comum com as de grupos ancestrais humanos mais antigos e primitivos, como Ardipithecus e Sahelanthropus.

Outra descoberta significativa foram as diferenças entre o de MRD, de 3,8 milhões de anos, e um fragmento não nomeado de crânio hominíneo, com 3,9 milhões de anos, descoberto na Etiópia por uma equipe de paleontólogos em 1981. O Belohdelie frontal, como é conhecido, tem características diferentes do MRD, mas semelhantes à da espécie de Lucy. Como resultado, o novo estudo confirma que o Belohdelie frontal pertence a um indivíduo da espécie de Lucy. Esta identificação estende o registro mais antigo do Australopithecus afarensis para até 3,9 milhões de anos atrás, e é isso que indica um período de pelo menos 100.000 anos de sobreposição com o ancestral Australopithecus anamensis.

Museu de História Natural de Cleveland

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