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A Vida em uma Concha

Da mesma forma que as pessoas, os paguros saem ganhando ao aproveitar o que outros deixam para trás

Em uma manhã de junho de 1986 entrei em uma rasa poça de maré em Long Island, no estado de Nova York, sentei em um caixote plástico de leite e joguei uma concha de caracol vazia na água. Em poucos minutos, um pequeno paguro deslizou em direção à concha, testou a abertura com suas garras para medir o espaço interior e girou-a várias vezes procurando por buracos.  Rapidamente, o caranguejo saiu de seu antigo refúgio e enfiou o vulnerável abdome naquela concha. Satisfeito com a troca, o animal foi embora, deixando sua concha antiga, e menor, para trás. Poucos minutos depois, outro paguro descobriu a residência descartada e, após o mesmo ritual de inspeção, fugiu com seu novo abrigo. Dez minutos depois, um terceiro caranguejo encontrou a antiga casa do segundo e reclamou seu prêmio, abandonando uma pequena concha com um grande furo.

Pode parecer estranho, mas esse foi um dos momentos mais felizes de minha vida como pesquisador. Por quase dez anos eu me perguntei se os paguros viviam nas conchas desocupadas uns dos outros, e finalmente tive uma confirmação. Fui a primeira pessoa a observar um animal fazendo uso do que sociólogos e economistas chamam de “cadeia de vacância”: um método organizado de troca de recursos em que todos os indivíduos se beneficiam ao reclamar posses mais desejáveis abandonadas por outros. Mesmo que os paguros tenham cérebro e sistema nervoso relativamente simples, evoluíram comportamentos sociais sofisticados para extrair o máximo dessas cadeias.

É muito provável que pesquisadores descubram isso em outros animais; evidências preliminares indicam que, além de paguros, lapas, lagostas, peixes, polvos e pica-paus também se revezam aprimorando seus lares. Estudar esses animais pode nos ajudar a reconhecer e melhorar as cadeias de vacância de nossas próprias comunidades, fornecendo novas ideias para problemas como falta de apartamentos em Manhattan e crimes relacionados a drogas. O fato de paguros e outras criaturas dependerem de cadeias de vacância também está mudando a forma como os sociólogos pensam as estratégias econômicas. Algumas táticas, ao que parece, não requerem inteligência humana ou altruísmo: são muito mais universais.

Caranguejos em fila

De junho a setembro de 1986, e também no verão seguinte, levei grupos de estudantes à praia West Meadow, em Long Island, para observar a cadeia de vacância do Pagurus longicarpus – um caranguejo comum na costa leste. Eu queria descobrir fatos básicos sobre suas cadeias: quantos deles adquiriam novas conchas em média e se a disponibilidade de novas conchas criava cadeias maiores. Depois de uma manhã de observações voltamos para meu laboratório e colocamos os crustáceos em água morna, para que eles relaxassem e assim pudéssemos removê-los de suas conchas sem machucá-los. Pesamos e medimos os caranguejos e suas conchas para determinar seus tamanhos em várias posições nas cadeias. Quando obtivemos o que precisávamos, colocamos cada caranguejo em um tanque com água fria e uma grande seleção de conchas vazias. Depois de escolherem, foram devolvidos à praia.

Descobrimos que os caranguejos se mudavam para conchas maiores e que as cadeias iniciadas com conchas grandes eram de fato mais longas – permitindo que mais deles pegassem novas conchas – que as iniciadas com conchas pequenas. Entre dois e três crustáceos se mudaram para um novo lar nas cadeias que iniciamos – uma média de 2,5. Algumas pessoas ficaram desapontadas com esse número. Elas esperavam algo maior, da ordem de 10 ou até 50 caranguejos se beneficiando em cada cadeia. Eu digo a elas que esse número é grande se o encararmos da forma correta. Geralmente, quando pensamos em competição, supomos que um indivíduo ou grupo é bem-sucedido e outros, não. Mas em cadeias de vacância, mesmo curtas, não há apenas um vencedor. Se apenas dois paguros adquirissem conchas novas já teríamos o dobro do número de indivíduos que obtêm recursos em competições normais.

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Depois de nossos estudos, outros pesquisadores relataram cadeias de vacância em várias espécies de paguro, incluindo os das terras caribenhas, com frequência vendidos como animais de estimação. Um dos exemplos mais estranhos inclui um caracol predador que ataca outros tipos de caracol, entre eles os que têm conchas apreciadas pelos paguros. Quando o caracol predador agarra sua presa, abre um buraco em sua concha com uma língua parecida com uma grosa e injeta enzimas digestivas, os paguros próximos se reúnem, seguindo o cheiro dos químicos liberados pelo caracol ferido. Quando o predador finalmente retira sua presa de seu invólucro protetor – um processo que pode levar até uma hora – o caranguejo mais próximo mergulha na concha agora vazia. Enquanto isso, outro caranguejo imediatamente pega a concha do primeiro, e assim por diante. Em vez de seguir os cuidadosos rituais de inspeção que observamos em Long Island, os caranguejos presentes na cena do assassinato de um molusco tomam decisões instantâneas, escolhendo novos lares com base apenas em sua visão. Todos na cadeia se beneficiam, mas o imediatismo da competição acelera tudo.

Recentemente pesquisadores fizeram mais descobertas surpreendentes sobre cadeias de vacância em paguros. Acontece que esses caranguejos usam pelo menos dois tipos de cadeia: síncrona e assíncrona. No tipo assíncrono (o que observamos), geralmente apenas um caranguejo de cada vez encontra uma concha vazia. Mas nas cadeias síncronas os animais fazem fila, por ordem de tamanho, atrás daquele que estiver examinando a concha vazia. Quando o primeiro caranguejo da fila se acomoda em uma nova concha, o de trás ocupa a abandonada. Comportamentos tão bem orquestrados sugerem cognição social sofisticada, especialmente para um animal com cérebro relativamente pequeno e simples.

Poucos estudos publicados se concentram nas cadeias de vacância de outros animais, mas observações preliminares sugerem que a estratégia evoluiu em muitas espécies diferentes. Assim como os paguros, várias espécies de polvos e cicilídeos vivem em conchas vazias de caracóis, e as defendem. As lapas se esgueiram para os recessos de pedras, e os peixes-palhaço se aconchegam em anêmonas. As lagostas do Maine e do sul ocupam pequenas cavernas em rochas ou corais, e o pica-pau-de-cabeça vermelha faz ninhos nos troncos de pinheiros. Conforme crescem e envelhecem, muitas dessas criaturas procuram abrigos melhores, criando vagas para outros animais. As pessoas fazem exatamente a mesma coisa.

Os primeiros estudos sobre cadeias de vacância em humanos foram realizados nos anos 60 em Manhattan, a apenas 96 km da praia onde observei os paguros trocando conchas. O falecido Frank Kristof, então diretor de planejamento e pesquisa da Diretoria de Habitação e Redesenvolvimento de Nova York, percebeu que a construção de novos apartamentos criava reações em cadeia que permitiam às famílias se mudar de imóveis pequenos e abaixo do padrão para outros, maiores e mais adequados. Kristof descobriu que cerca de 2,4 famílias se mudavam para novos apartamentos a cada nova unidade de habitação construída. Seguindo o trabalho de Kristof, outros pesquisadores descreveram cadeias de vacância de imóveis nos Estados Unidos e outros países. Um dos mais abrangentes desses estudos, sobre o mercado nacional de habitação descobriu que a cadeia média ajudava cerca de 3,5 famílias a se mudar.

Mas Kristof não foi o único interessado em cadeias de vacância nos anos 60. Harrison White, então professor de sociologia da Harvard University e criador do termo “cadeia de vacância”, descobriu essas sequências de maneira independente em grupos religiosos – especificamente em congregações metodistas, presbiterianas e episcopais. Ele se deu conta de que eventos como a aposentadoria ou morte de um sacerdote, a abertura de uma nova igreja ou um pastor mudando de profissão criavam cadeias de vacância. Depois do trabalho de White sociólogos e economistas investigaram esse fenômeno em diversas profissões: técnicos de futebol, policiais, oficiais das forças armadas e sindicatos vendendo drogas ilegais. White e outros pesquisadores descobriram que entre 2,5 e 3,5 pessoas se mudavam para empregos novos, com melhores salários. Mas esse efeito dominó nem sempre é bom. Pesquisas sobre drogas revelam que, quando os traficantes do alto escalão são presos, longas cadeias de vacância são criadas, permitindo que muitas pessoas avancem dentro dessas organizações.

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As cadeias de vacância provavelmente estão em ação quando as pessoas adquirem alguns tipos de bens de consumo, especialmente carros. Desconheço estudos recentes sobre o assunto, mas trabalhos preliminares apontam nessa direção. Em 1941, Theodore H. Smith fez um detalhado estudo do mercado de carros novos e usados nos Estados Unidos. Apesar de não ter usado o termo “cadeia de vacância”, ele concluiu que essas mudanças são cruciais para a indústria automotiva. No início do século 20, vendedores de carros perceberam que, para negociar mais facilmente, teriam de pegar os veículos usados de seus clientes na troca e vendê-los a outros compradores. Usando os dados de Smith, estimo que cerca de três pessoas tenham adquirido carros na cadeia média dessa época.

Por que as cadeias de vacância tendem a beneficiar cerca de três indivíduos ou grupos, tanto em paguros quanto em humanos? Meu palpite é que alguma relação ainda não descoberta entre a demografia de humanos e paguros explica esse efeito – talvez suas taxas de nascimento e morte, ou as taxas às quais novos recursos são produzidos e usados. Mas esses são apenas palpites. O que está claro é que as cadeias de vacância, tanto de animais quanto de pessoas, não surgem com qualquer tipo de recurso antigo: elas se tornam possíveis graças a recursos que compartilham um conjunto distinto de propriedades.

White definiu essas propriedades. Primeiro: esses recursos são desejados e relativamente difíceis de conseguir; empregos, carros e casas não ficam jogados por aí, esperando para serem ocupados. Segundo: essas coisas só podem ser ocupadas por um único indivíduo ou família de cada vez, e essas “unidades de recurso” (resource units) são deixadas para trás sempre que uma nova é adquirida. Finalmente, e mais importante, uma unidade de recurso não pode ser ocupada, a menos que esteja vaga. White estava estudando pessoas, mas essas mesmas características distinguem cadeias de paguros. As conchas são relativamente raras; apenas um paguro de cada vez ocupa uma delas. Quase todos os caranguejos adultos têm conchas para abandonar quando encontram uma nova, e precisam esperar que fique vaga antes de se mudarem.

Se nos concentramos unicamente nos recursos, viramos de cabeça para baixo a maneira típica de encarar essa distribuição. Economistas e sociólogos geralmente pensam sobre quem fica com o que e sobre a justiça da distribuição de bens valiosos. Imaginamos, por exemplo, a importância da inteligência, etnia, educação ou posição socioeconômica para adquirir empregos ou casas. Essas perguntas são significativas por si próprias, mas às vezes nos impedem de descobrir outros processos que influenciam a distribuição de recursos, e são capazes de obscurecer semelhanças entre espécies.

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Modelos de inspiração

Como o tipo de recurso define as cadeias de vacância de pessoas e animais – e não o tipo de indivíduos que delas participam –, estudar os paguros pode esclarecer como melhor maximizar a redistribuição de recursos em populações humanas. Pesquisadores poderiam, por exemplo, dar a um grupo de paguros conchas de tamanhos e condições diferentes, variar suas taxas de nascimento, morte e “aposentadoria” ao adicioná-los ou removê-los e administrá-los para determinar quais situações resultam em uma maioria de indivíduos, ou grupos, melhorando de vida mais rapidamente. Afinal, podemos manipular eticamente grupos de paguros, mas não de pessoas.

Os seres humanos já dependem de várias criaturas pequenas para se compreenderem: estudamos moscas-das-frutas para aprendermos genética, ratos e camundongos para pesquisarmos algumas de nossas doenças, e lesmas-do-mar para determinar as bases moleculares do aprendizado e da memória. Experimentos com paguros poderiam se tornar os primeiros a modelar os sistemas sociais humanos com animais mais simples. Há pouco tempo, voltei à praia onde iniciei minhas observações para buscar inspiração. Caminhei pela poça de maré e vi os paguros se arrastando lentamente pela areia abaixo da água. Olhei para eles com o que só posso chamar de gratidão. O que começou como uma busca divertida para satisfazer minha curiosidade acabou revelando ideias e conexões que eu nunca poderia ter imaginado naquele primeiro dia em Long Island. E o mais importante, fiquei deliciado em aprender que alguns padrões de nossa vida social são tão fundamentais que os compartilhamos até com criaturas bastante primitivas.

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