A COVID-19 deu origem a uma guerra entre pesquisadores
Quando Max von Pettenkofer se matou, em 1901, deixou para trás uma carreira histórica como higienista e oponente de Robert Koch, médico alemão e microbiólogo que descobriu o Vibrio cholerae, o agente causador da cólera. Von Pettenkofer, o fundador do Instituto de Higiene de Munique, questionou a teoria microbiana das doenças de Koch, que dizia que um microorganismo é tanto necessário quanto suficiente para causar a doença. Von Pettenkofer alegava que os microrganismos poderiam somente causar a doença na presença de um fator ambiental “local”.
A batalha entre os dois homens explodiu em uma divisão sob a questão da infectividade da cólera. Koch e seus companheiros contagionistas alegavam que a bactéria se espalhava pela água. Von Pettenkofer e seus seguidores acreditavam que a cólera era inalada como um miasma, que surgia da terra contaminada pelo esgoto. Ansioso para provar sua teoria de que os microrganismos sozinhos não causavam a doença, e em meio a uma das mais mortais pandemias de cólera do século 19, Von Pettenkofer pediu a Koch que lhe enviasse microrganismos vivos da cólera. Koch reuniu em um frasco o bacilo da cólera. Na frente de testemunhas, Von Pettenkofer engoliu o conteúdo do frasco. Dias depois, relatou que não só não morreu, como não sofreu efeitos duradouros.
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Von Pettenkofer mostrou estar tragicamente errado sobre a rota de transmissão do cólera quando a prefeitura de Hamburgo decidiu não filtrar a água da cidade, levando a aproximadamente 9 mil mortes. Mas, embora Von Pettenkofer estivesse errado sobre o modo como a cólera era transmitida, ele estava certo quanto ao fato de que um microrganismo é geralmente, insuficiente para causar infecção, doença e morte. Como Paul de Kruif escreveu em seu famoso livro de 1926 Microbe Hunters, “Microrganismos assassinos estão em todo lugar, se infiltrando em todos nós, ainda assim eles conseguem assassinar somente alguns de nós”. Ao longo dos anos, os postulados propostos por Koch sobre o processo de infecção passariam por diversas modificações, a medida que ficava claro que os patógenos precisam encontrar um hospedeiro vulnerável a fim de causar danos, tal como havia sido previsto por Von Pettenkofer. Suas teorias também iriam influenciar nosso entendimento sobre a importância dos fatores ambientais para a saúde pública.
Toda essa história deve soar familiar para qualquer um que esteja acompanhando a mortal trajetória da COVID-19, através de diferentes populações e lugares, assim como o acerbo debate sobre como pará-la. Assim como na guerra ao cólera na década de 1890, as diferentes teorias propostas sobre o contágio da COVID-19 e os vários métodos para reduzir a taxa de letalidade têm gerado não somente conflitos científicos, mas também uma crescente da desconfiança da população, convulsões políticas e até motins. O debate sobre a COVID-19 e as discussões do passado, no qual diferentes lados falharam em perceber a possibilidade de que talvez não possuíssem a resposta definitiva, pode contem lições importantes para a força tarefa para a COVID-19 nomeado pelo presidente eleito Joe Biden. Posições rígidas, que deixam pouco espaço para a incerteza e para nuances, prejudicam a confiança pública à medida que várias posições se mostram equivocadas.
Na atual guerra contra a COVID-19, a comunidade científica global se divide fortemente entre a defesa de intervenções de saúde pública mais ativas, às vezes até draconianas, que incluem quarentenas generalizadas,fechamento de comércios não essenciais e uso obrigatório de máscaras. Do outro lado, alguns médicos, cientistas e gestores de saúde pública estão questionando a sabedoria dessa abordagem, à luz de vários pontos obscuros quanto a sua eficácia e sob evidências de que tais medidas podem não estar funcionando em alguns casos, e podem até estar dano. A medida que pessoas deixam de trabalhar como resultado direto das quarentenas, e conforme mais e mais famílias se encontram sem conseguir pagar o aluguel ou a conta do mercado, houve aumento nos casos de violência doméstica, uso ilegal de drogas e abandono de lares.
Os dois lados da guerra da COVID-19 estão ilustrados por dois documentos: o Memorando John Snow e a Declaração Great Barrington, que foram publicadas online em outubro. O primeiro apresenta a posição majoritária, que apoia medidas fortes para limitar o contato humano e a movimentação no conselho. Nos Estados Unidos, essa abordagem inclui o fechamento de lugares públicos e a restrição ao funcionamento de hotéis e diversos pequenos comércios como restaurantes e lojas, deixando milhões de americanos sem trabalho. A Declaração Great Barrington, uma ideia minoritária, defende a “proteção focada”, permitindo que indivíduos mais jovens e mais saudáveis continuem sua vida, trabalhando e frequentando a escola, enquanto se busca por medidas protetoras para os mais vulneráveis ao vírus: os mais velhos, os que estão em instituições como cadeias e hospícios e outros indivíduos de alto-risco. Essa abordagem foi empregada na Suécia em larga escala.
Defensores de ambas as posições se mobilizaram, fazendo ataques contundentes ao campo oposto. Em alguns casos, esses ataques causaram sérios estragos a reputações de algumas pessoas, e fizeram com que pelo menos alguns cientistas adotassem uma atitude de autocensura e evitassem a publicação de dados que poderiam contribuir com as iniciativas para diminuir as taxas de letalidade associadas tanto ao vírus quanto aos métodos usados para combatê-lo.
O primeiro relato de intimidação ocorreu na China em Dezembro de 2019, quando Li Wenliang, um oftalmologista no Hospital Central de Wuhan, alertou sobre um novo surto infeccioso, e pediu que seus colegas adotassem medidas protetivas. De acordo com um relato sobre o episódio, Li foi “censurado por líderes de hospitais e convocado ao Escritório de Segurança Pública em Wuhan, onde foi forçado a assinar uma declaração na qual foi acusado de espalhar rumores falsos e perturbar a ordem pública”. Li morreria no dia 7 de fevereiro, de COVID-19.
Nos Estados Unidos, John Ioannidis, um epidemiologista e professor de medicina na Universidade de Stanford, foi alvo de ataques vindos não de autoridades médicas, mas de seus companheiros cientistas. Ioannidis escreveu alguns dos artigos científicos mais citados na história da medicina e foi citado em 2010 em um artigo da revista The Atlantic como possivelmente “um dos cientistas vivos mais influentes”. Ainda assim, foi atacado quando publicou um artigo de opinião expressando preocupações quanto à falta de dados sobre a eficácia de medidas como quarentenas, e sugerindo que elas poderiam causar danos por si mesmas. Nós lemos alguns dos e-mails obscenos e difamatórios que foram enviados para Ioannidis e seus chefes e colegas em Stanford. Diversas alegações ilusórias foram colocadas na imprensa, incluindo a alegação de que haveria conflito de interesse econômico, causado por um estudo sobre a COVID-19 do qual ele foi co-autor. Mas uma análise por uma empresa especializada revelou que Ioannidis não podeia ser acusado de interesse por motivos financeiros. Ioannidis foi atacado de novo quando publicou uma análise mostrando que a taxa de letalidade e infecção era muito menor do que a que foi relatada inicialmente. Depois, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças publicou boletins com taxas baixas similares (que variam por grupo de idade, tempo e localização) e a Organização Mundial da Saúde publicou uma pesquisa atualizada, feita por Ioannidis, mostrando uma taxa de infecção e mortalidade geral mais baixa.
Na Suécia, onde a posição minoritária expressa pela Declaração Great Barrington foi colocada em prática, diversos médicos relataram que estavam sofrendo bullying, e risco de perder o emprego, por se posicionarem contra a abordagem do país. Em outro caso, Lonni Besançon, bolsista de pós-doutorado na Universidade de Linköping, na Suécia, recebeu diversas ameaças de morte após ter feito comentários sobre Didier Raoult, o pesquisador francês que disse que a hidroxicloroquina era eficaz no tratamento para a COVID-19. Besançon disse que Raoult violou os protocolos editoriais para artigos de pesquisa revisados por pares ao publicar um artigo apenas um dia após tê-lo recebido, e que a equipe de Raoult possuía conflitos editoriais de interesse. O trabalho de Raoult logo se mostraria ser de má qualidade e possivelmente fraudulento.
Esses ataques, e outros semelhantes, levaram alguns cientistas a se autocensurarem, por medo de que manifestar posicionamentos contrários colocasse em risco suas reputações, o que poderia potencialmente afetar suas carreiras. Um epidemiologista nos disse que o ambiente é “muito tóxico” para falar conosco, mesmo sob anonimato. A jornalista britânica Laurie Clarke relatou dificuldades similares quando tentou entrevistar epidemiologistas que questionaram as principais ideias em relação a quarentena. Um especialista disse a ela por e-mail que “no momento, é perigoso colocar a cabeça acima do parapeito”.
Mesmo quando os especialistas estão dispostos a levantarem suas cabeças, os preconceitos quanto ao que pode ser publicado podem reforçar o modo de pensar de um determinado grupo. Stefan Baral, epidemiologista e professor associado no Centro Johns Hopkins para Saúde Global, relata que escreveu uma carta sobre os perigos potenciais das quarentenas generalizadas que foi rejeitada em mais de 10 revistas científicas e seis jornais em abril. Baral, que é um especialista em saúde pública com muitas publicações, reconhece que as rejeições poderiam ter ocorrido “porque não havia nada de útil no meu texto”. Mas, ele acrescenta, “foi a primeira vez na minha carreira que eu não consegui publicar em lugar nenhum”.
Os efeitos de intervenções sobre a saúde pública podem ser difíceis de avaliar. Por isso, são especialmente importantes as evidências provenientes dos poucos ensaios controlados envolvendo tais intervenções. Ainda assim, os resultados altamente antecipados do único ensaio controlado avaliando o uso de máscara e a infecção por COVID-19 não foram publicados durante meses. Ansiosos por conhecer os resultados, os pesquisadores contataram Thomas Lars Benfield, um dos principais investigadores do estudo com 6 mil moradores de uma comunidade na Dinamarca, sobre o atraso da publicação. Benfield respondeu que os resultados seriam publicados, “assim que uma revista tiver a coragem o suficiente de aceitar a pesquisa”. A pesquisa finalmente apareceu, após um atraso de cinco meses, no dia 18 de novembro na revista Annals of Internal Medicine. Não mostrou um benefício claro no uso de máscaras na configuração da comunidade. Em um editorial que acompanhava, os editores recomendaram o uso de máscara enquanto notavam que qualquer benefício provavelmente seria pequeno, e acrescentavam: “Devido à feroz resistência exibida por líderes e populações de certos países contra a recomendação do uso de máscaras, estaria o Annals agindo de forma irresponsável ao publicar esses resultados, que podem facilmente ser usados de má fé por aqueles que se opõem a essas recomendações? Nós acreditamos que não. Mais irresponsável seria não publicar os resultados de uma pesquisa projetada cuidadosamente porque as descobertas não são favoráveis ou definitivas como algumas pessoas esperavam”.
Outro exemplo vem de um artigo de pesquisa relatando dados sobre os benefícios e perigos da quarentena com baseem dados epidemiológicos da Suécia e de outros países. O artigo esperou por dois meses a resposta de uma das quatro principais revistas médicas antes de ser rejeitado. A importância desse artigo não pode ser ignorada; ele revisa a eficácia de uma abordagem empoderadora, recomendada pela Suécia, e a compara a estratégias mais rigorosas baseadas no emrego das forças da lei. Alguém poderia até pensar que o atraso se deve à falta de mérito científico do artigo. Entretanto, ele será publicado pela Annals of Epidemiology e os leitores poderão julgá-lo por si mesmos. Tendo em vista tais episódios, fa combinação de atores como ambiente tóxico, autocensura e revistas científicas enviesadas explicam a escassez de resultados céticos ou heterodoxos no debate sobre a melhor maneira de controlar a COVID-19.
O efeito líquido do bullying acadêmico e dos ataques pessoais foi a criação de um “pensamento grupal”, um problema que gera suas próprias consequências mortais. Enquanto o mundo encara uma segunda e uma terceira onda de covid, não há mais dúvida de que medidas de saúde pública como as diversas formas de restrição ao contato social podem tanto salvar vidas como causar mortes. Agora, após as notícias sobre as vacinas lançadas pela Moderna e pela Pfizer e pela empresa alemã BioNTech, seria melhor que a força tarefa contra a COVID nomeada pelo presidente eleito Joe Biden evite suposições apressadas sobre qual vacina usar, ou quais outras medidas de saúde pública adotar. A força tarefa deve revisar todos os dados e abordar os questionamento sobre rigor e transparência das pesquisas. E, independentemente da efetividade de uma vacina, a previsão é que sua distribuição ocorra daqui a muitos meses, e pode levar ainda mais tempo se houver uma resistência considerável à vacinas entre membros da população.
Isso significa que ainda haverá a necessidade para medidas razoáveis e efetivas de saúde pública durante muitos meses. A população está exausta e cansada das mensagens conflitantes vindas da Casa Branca de Trump e de especialistas da saúde pública, mas também está cansada do isolamento e da perda da renda. As pessoas estão se tornando mais resistentes com a perspectiva de mais medidas restritivas de saúde pública. Silenciar qualquer ponto de vista científico poderia deixar o público ainda mais resistente a novas medidas de saúde pública. A nova administração também irá precisar de comunicadores de saúde pública para ajudar as pessoas a entenderem as evidências e os argumentos que fundamentem essas medidas.
Felizmente, alguns médicos e pesquisadores estão entabulando um diálogo respeitoso. Em outubro, um grupo de pesquisadores com visões divergentes participou de um debate virtual entre lados aparentemente opostos. O debate foi ideia de Colleen Hanrahan, cientista assistente na Escola Johns Hopkins Bloomberg de Saúde Pública. Hanrahan se diverte quando lembra como ela reuniu os participantes: ela disse a eles que queria um diálogo sem confrontos, e esperava que fosse “um pouco mais civilizado do que o primeiro debate presidencial”.
No debate patrocinado pela Universidade Johns Hopkins, os participantes representavam pontos de vistas alinhados tanto com o Memorando John Snow quanto com a Declaração Great Barrington. O debate foi notável não somente por sua cordialidade, mas também pelas áreas em acordo que apareceram em relação a quarentena. Membros da audiência estavam animados e enviaram comentários como “seria bom se nossa cultura atual encorajasse discussões razoáveis baseadas em evidências como essa. A questão tem vários pontos e precisa de um equilíbrio cuidadoso de todas as considerações, e isso não pode ser alcançado com a mente fechada, pouca atenção e insultos pessoais sendo atirados. OBRIGADO!”.
Os especialistas discutiram de tudo, desde a imunidade de rebanho até o rastreamento do contágio e o isolamento, além de proteções baseadas no risco e quarentenas geográficas. Embora tenham havido diferenças sobre como focar as quarentenas, todos concordaram que elas podem e devem ser evitadas em muitos casos. Outra área de acordo: a medida de sucesso das intervenções não pode ficar somente no número de mortes por COVID-19. Os prejuízos das quarentenas devem ser incluídas no cálculo de custo-benefício.
É crucial que a força tarefa de Biden evite adotar uma perspectiva apenas e, ao invés disso, dê sequência na abordagem proposta pelos especialistas que compareceram ao debate na Johns Hopkins. A próxima fase do controle da COVID-19 só será aceita por uma população profundamente dividida se adotarmos uma visão mais ampla e cientificamente informada do que pode funcionar.
Jeanne Lenzer
Shannon Brownlee
Publicado em 02/12/2020